Nascemos e crescemos em busca do
futuro; é a nossa esperança.
Amadurecemos, socializamos, multiplicamos; é a nossa realização.
Envelhecemos, estorvamos, nos isolamos; é o nosso crepúsculo. (JCN)
José Carlos Neves
O manobrista olhou
atentamente dentro do carro, viu a Eiko e Elisa, e dirigiu-se ao JK, que guiava, e apontou
para o meu amigo Trasmontano, no assento do carona, dizendo, ou melhor,
concedendo: “Como ele é idoso, o Sr. pode estacionar em qualquer
destas vagas reservadas”. Acabavam de entrar no estacionamento de um grande
restaurante – dizem ser o maior do país, e preferido de Lula – em São Bernardo.
Pois é, todos tinham ao redor da mesma idade, mas o olho clínico do manobrista
só reconheceu no meu amigo os seus 67 anos. Graças a isso, todos, mais o
carro dos seus cunhados, tiveram o reconhecimento de serem tratados como
idosos. Aleluia! Esfuziante, o Trasmontano só não pulou de alegria
porque seu corpo, um pouco acima do peso e cansado, não logrou levantar os pés
grudados ao chão, como imantados. Afinal, em 22/09/12, era premiado com uma quota ou deferência social
que deveria ter algum dedo lular, já que o seu dono (do dedo) era assíduo
frequentador do restaurante, e nunca ninguém neste país havia concedido tantas
benesses à terceira idade. O meu amigo, estarrecido, não pôde recusar o
tratamento vip de uma vaga para idoso, pois já não havia outras à
vista. Agora, além de aposentado, seria idoso e mais um cotista
social.
Intrigante! Era a primeira vez que
alguém se referia explicitamente ao meu amigo como idoso. Essa palavra
sempre lhe havia parecido tão atemporal para si que demorou a dar-se conta de
que a observação do manobrista era com ele mesmo. Na verdade, ele nunca havia
tido percepção da sua idade real. Não se lembrava de que houvesse passado por
uma idade infantil, sentindo a infância como tal, ainda que tivesse algumas
lembranças fatuais do período. O mesmo com a adolescência; com o jovem
adulto; com a meia idade; e mesmo com a idade madura, diga-se
até aos 60 anos. Até então, sempre
se houvera sentido numa idade mediana,
permanente, algo como ao redor de 30 anos, só para uma noção numérica. Era
assim como se houvesse nascido próximo a essa idade e, ao mesmo tempo, tivesse
passado e vivido todos os acontecimentos pessoais e naturais a cada uma das
etapas da vida anterior e posterior aos 30. Talvez o fato de haver tido uma
infância e adolescência – ou a ausência delas – quase nulas, i.e., por
raramente desfrutar da leveza e do direito de vivê-las no que elas têm
de prazeroso e inocente, mas vivê-las intensamente com o peso da
responsabilidade e dever de um adulto, é possível, sim, que isso tenha
cristalizado no seu inconsciente a falta de percepção desses períodos etários.
Ele se lembra de alguns atos do quase bebê; do menino de aldeia
trasmontana a ajudar nos trabalhos de adultos, mas sem os brinquedos e leveza
da infância; do adolescente responsável por ajudar a família, mas sem
liberdade e a magia contestadora da adolescência; do adulto já livre,
mas com os deveres e responsabilidades do chefe de família; do homem maduro e
independente, mas subjugado pelos deveres profissionais, sociais e familiares,
no mundo que ele constituiu em volta de si, quase sem se aperceber.
Até aos 60 anos, o meu amigo sempre
teve a sensação de que o seu futuro ainda estava por chegar. Embora
considerasse os sexagenários já entrados na terceira idade, isso acontecia só
com eles. Ele seguia buscando seu futuro, até que este viesse buscá-lo. Ao
completar 60 anos, a Eiko e o Cláudio decidiram fazer-lhe uma festa-surpresa.
E, pela primeira vez, deparou-se com seu futuro. Tentou empurrá-lo para mais
longe, mas percebeu que ele não estava mais de costas; e trombou com ele; bem
de frente! Os 60 anos representaram o seu marco de chegada. O seu prêmio era o
futuro que ele acabara de encontrar, e, como se recusava a chegar até ele, foi
o futuro que, abrupta, inesperada e
inexoravelmente chegou até ao meu amigo. Finalmente, começou a sentir-se com os
seus 60 anos. Dali em diante, não precisaria mais tentar escapar do futuro,
pois já estava enredado nele. Não havia mais como fugir, e diante do estupro
etário inevitável, só lhe restaria relaxar e gozar o quanto e se pudesse.
Foi só alguns anos depois desse choque que, gradativamente, começou a aceitar o
que antes se recusava a usar no seu cotidiano geriátrico, não sem sentir um
grande constrangimento: as filas preferenciais; o transporte gratuito em ônibus
e metrô; os programas de saúde preventiva; alguns remédios gratuitos; até
chegar – maravilha das maravilhas – à vaga para idoso.
Hoje, com 67 anos, o meu amigo já
gastou 7 do futuro que ganhara aos 60. Ele desconhece quantos ainda tem na sua poupança
etária, por isso trata de gastá-los com parcimônia. O peso da idade, para
ele, parece ter funcionado como um peso físico. Alguma coisa como começar
agarrando um halteres de 1 kg; leve, pois pesa só 1 kg; e vai agarrando mais
1+1+1+...= n kg, até atingir um limite de capacidade física que variará
de pessoa para pessoa, de acordo com a sua constituição corporal, etária e
treinamento para suportar tal ou qual peso. Os efeitos na sua idade funcionaram
com bastante semelhança: os anos foram-se acumulando sem que sentisse
alterações sensíveis no dia a dia e, mesmo com alguns acidentes e incidentes no
seu percurso, pôde chegar aos 60 anos, sem perceber mudanças importantes. Mas,
depois dos 60, ele tem sentido quase todos os sintomas, bons e ruins, a que a
idade lhe dá direito e lhe impõe. Mas não lhe tirou o melhor: a liberdade de
pensar. Afinal, quem se interessa pelo que os velhos pensam? Só
outros em torno do mesmo nível geriátrico, que gradativamente se vão juntando a
ele, a formar um grupo que, ainda que com ideias e estilos individuais
diferentes, expõem suas experiências empíricas; seus pensamentos filosóficos,
científicos ou literários, em textos como este, talvez pobre de erudição, mas livre
como expressão de sentimento.
Há uns 60/70 anos atrás, uma pessoa de 50 anos era fisicamente velha; se
formos para o início de 1900, aos 40 anos, também. É claro que o
desenvolvimento da economia, da medicina, da maior produção de alimentos mais
saudáveis, e mais higiene corporal e ambiental, tudo isso elevou os parâmetros
de perspectiva de vida para além dos 70/80 anos, melhorando muito a saúde
física e mental. Paradoxalmente, a agitação da vida moderna, a pressão social,
profissional e familiar, o trânsito, a insegurança urbana e a competição por
status e poder econômico, têm trazido ao Homo Sapiens distúrbios físicos e psíquicos inimagináveis há menos de um
século atrás. Melhorou-se na longevidade cronológica, na saúde física, na
melhoria econômica, no status social, mas houve perda na qualidade psíquica com
as fobias, o stress e todos os distúrbios mentais da vida moderna. O meu amigo
começou a trabalhar, oficiosamente, aos 10 anos, e jamais teve qualquer
dificuldade em empregar-se. Sempre que saía de um emprego, já tinha outro para
começar no dia seguinte. Pois a partir dos 60 anos, depois de desligar-se
definitivamente da sua Melhoramentos, nunca mais conseguiu um trabalho, desses
que ele sempre foi à luta para conquistá-los, apesar da enxurrada de
curriculuns distribuídos para os mais diversos cargos, cujas exigências e
requisitos eram inferiores à capacitação e experiência acumuladas ao longo dos
seus, hoje, 57 anos de trabalho. Descobriu que agora nada valem o seu pomposo
curriculum e vivência internacional; o importante é ter networking e
conexão com as redes sociais. Começou a sentir, enfim, que de fato havia
passado dos 60. Talvez ainda não tivesse tocado nessa realidade mais cedo – que
começa em torno aos 45 – porque passou mais de 30 anos na mesma empresa. Sobram-lhe experiência profissional e
intelectual, acima da média. Mas o paradoxo é que também lhe falta/sobra
empregabilidade. Agora, quase no extremo crepuscular da ponte
que liga as margens etárias, está bem
próximo de completar a travessia do seu tempo.
JCN –
OUT - 2012