domingo, 29 de abril de 2012

Causo 44 Lier Poker


Nicanor de Freitas Filho
            Quando foi formado o Consórcio de Exportação de Cadernos, denominado Protime, ao qual já me referi várias vezes, aqui no Blog, participamos 3 anos seguidos da Feira Internacional “Back-to-school” em Nova Yorque. Esta feira anual era realizada sempre no Colliseum, ao lado do Central Park e a partir de 1986 passou para o Jacob Javits Convention Center, lá na 11ª Avenue, perto da Rua 34. Com isso tivemos que procurar novos hotéis mais na redondeza, pois sempre ficávamos perto do Central Park e da Rua 58, pertinho do Colliseum.
            Em 1986, a primeira vez que participamos, íamos apenas em dois para a Feira. E fizemos a reserva de 1 quarto no Pensilvania Hotel, que fica quase em frente a Penn Station, na 7ª Avenue com rua 33. Mas como era importante para a concretização do Consórcio, acabamos indo em 4 colegas, sendo 1 da Propasa, 1 da Tilibra e 2 da Melhoramentos.  Como não previmos que ia lotar os hotéis, fomos, assim, meio sem compromisso, com mais dois colegas. Lá chegando, pedimos mais um quarto para os outros dois colegas, mas o hotel estava lotado. Assim, depois de muita conversa, conseguimos ficar os 4 no mesmo quarto, sendo que tinha um bom sofá-cama no quarto e eles se comprometeram colocar uma cama de armar, daquelas dobráveis. Como o quarto era grande e bom e todos amigos, ficamos sem problemas, apesar do ronco infernal de um deles (aquele colega do causo 18 Meu cachimbo inglês).
            Durante a arrumação do estande na feira, enquanto aguardávamos a montagem, que tinha que ser feita, necessariamente, pelos operários sindicalizados, nosso representante em Nova Yorque, nos ensinou uma brincadeira, na verdade um “jogo”, que ele chamava de “lier-poker” e consistia do seguinte: cada jogador pegava uma nota de 1 dólar, que contém 8 números de série, e, no par ou impar, um começava dizendo que entre todas as notas de todos os jogadores, devia conter “tantos” números “tal”. Por exemplo, 5 números zero. O jogador seguinte, à direita, tinha que aumentar a quantidade de números, ou passar para um número maior, o que geralmente, chegava até ao número 9 até um dos jogadores aumentar ou dizer “I don´t  believe”. Então contava-se quantos números tinham. Se tivesse menos que o afirmado, ele deveria pagar 1 dólar a cada participante. Porém se tivesse a quantidade dita ou mais, ele pegava a nota de 1 dólar de cada participante. Passávamos horas jogando o “lier-poker”.
            Quando chegamos à noite ao Pensilvania Hotel, encontramos o sofá-cama bem arrumado, bem como uma cama dobrável, também bem arruada. Mas é o conforto? Claro que as duas camas fixas eram muito melhores. Assim resolvemos disputar as camas no “lier-poker”. Só que fizemos uma tabelinha e quem primeiro perdesse 10 rodadas ficava com a cama dobrável, o seguinte ficava com o sofá e os dois “cobras” na mentira, ficavam com as camas fixas e confortáveis.
            Acho que não dormi nenhuma vez nas tais camas confortáveis. Só me sobrava a cama dobrável e acredito que uma vez fiquei no sofá. Ah! Se o jogo fosse “tênis-de-mesa...”

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Causo 43 Faculdade de Economia São Luis

Nicanor de Freitas Filho
Recebi estes dias um depoimento, sobre nossos tempos de estudantes, de um colega e bom amigo da Faculdade de Economia São Luis e então lembrei-me da primeira vez que li o nome “Faculdade de Economia São Luis”.
Como sabem, vim para São Paulo, em 1964, para trabalhar na Cooperativa Agrícola de Cotia e fazer cursinho para prestar vestibular para Agronomia. Meu sonho era me formar agrônomo pela Escola Superior de Agricultura Luis de Queiroz.
Numa determinada época, ainda em 1964, fui morar na casa de um primo, na esquina da Rua Frei Caneca com Rua Paim, na Bela Vista. Para trabalhar, eu ia a pé até à Rua da Consolação, tomava o bonde que subia a Consolação, pegava um pedaço da Av. Dr. Arnaldo e descia a Rua Teodoro Sampaio, paralela à Rua Cardeal Arcoverde, onde ficava a Cooperativa, quase no Largo da Batata. A volta era feita pelas mesmas ruas. O problema era que, se algum dos bondes tivesse qualquer problema, parava tudo! E isto era meio frequente de acontecer. Quando acontecia na volta para casa, geralmente era ali perto do Cine Belas Artes, na esquina da Av. Paulista com a Rua da Consolação. Neste caso, era mais fácil atravessar os três quarteirões da Av. Paulista e chegar até à Rua Augusta, por onde desciam os Tróleibus. Muitas vezes, quando ainda era cedo, eu descia a pé mesmo, pois era muito divertido descer a Rua Augusta naquele tempo, com os “play-boys” nos seus carrões importados e aquela quantidade de mulher bonita!
Eu tinha sido aconselhado, por um professor do cursinho, para mudar de ideia de fazer Agronomia, pois estava muito fraco em Biologia, Física e Química, que eram matérias eliminatórias no vestibular de Agronomia. Pelos meus conhecimentos apresentados nas provas do cursinho, e pela falta de dinheiro da minha família, para me sustentar numa Faculdade de tempo integral, ele me aconselhou a fazer Economia. Economia?! O que é isto?! Ele me explicou que era uma profissão nova, que tinha sido regulamentada há poucos anos, mas muito promissora. Era a profissão do futuro! Eu fiquei numa dúvida cruel, pois meu sonho era Agronomia e não Economia.
Num dia desses, enquanto estava naquele estado de “não sei o que fazer”, na volta da Cooperativa para casa, houve uma pane nos bondes e eu desci ali na esquina da Av. Paulista com Rua da Consolação e vinha pensando em descer a Rua Augusta para ver as meninas. Ainda estava claro, eu vim caminhando pela Av. Paulista e quando atravessei a Rua Bela Cintra, vi aquela bonita igreja e na continuação um jardim na frente de um prédio portentoso, com um portão enorme, no meio do quarteirão entre a Rua Bela Cintra e Rua Haddock Lobo. No lado esquerdo do portão, de quem está na avenida, uma placa de bronze, bem lustrada, com a inscrição: “Faculdade de Economia São Luis”. Eu olhei aquele bonito prédio e pensei, se a Faculdade de Economia é assim tão bonita, acho que posso mesmo tentar o vestibular, conforme conselho do meu amigo-professor. Mas como vou passar, se não estou estudando as matérias principais do vestibular de Economia: Geografia e História? Seria muito difícil! Mas o prédio, o portão e a placa de bronze me chamaram a atenção!
Meu amigo-professor – a quem devo muito – me “arranjou” um emprego de meio período, no Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, para eu poder estudar as tais matérias e três meses depois eu fazia vestibular na USP, na PUC e na São Luis. Bombei na USP, fiquei na lista de espera na PUC e passei na São Luis, onde fiz o curso de Economia, que muito me ajudou na vida profissional. Sempre que entrava na Faculdade, pela Av. Paulista (tinha entrada também pela Rua Haddock Lobo), via aquela placa bonita no portão e me lembrava do que me ajudou a tomar a decisão de ser Economista em vez de Agrônomo.



sexta-feira, 13 de abril de 2012

Causo 42 Banho inesperado...

Nicanor de Freitas Filho

Quando vim para São Paulo, em 1964, fui morar numa pensão na Rua Butantã, depois mudei para a casa de meus primos, voltei a morar noutra pensão e finalmente, até me casar, aluguei um apartamento no “treme-treme” – como era chamado -  o Edifício Monções, que fica em frente à Câmara Municipal. Já me referi ao apartamento no causo nº 33, do “Cobra do Violão”. Minha intenção era morar sozinho, mas meu chefe pediu para ficarem comigo o irmão dele e outro amigo, pois ambos tinham deixado de ser padres e estavam vindo para São Paulo. Tinha um quarto só, então compramos um beliche onde eles dormiam. Para mim foi ótimo, porque repartíamos as despesas e pudemos até contratar uma empregada, que cozinhava, lavava, passava e arrumava tudo para nós.
Em seguida, um deles casou e veio para seu lugar um namorado de uma prima, mas que também é mineiro e dava tudo certo. Aliás, houve depois várias mudanças de hóspedes, pelo menos até eu me casar, tendo comprado um outro beliche, porque meu irmão veio morar em São Paulo também. Éramos em quatro.  Três de nós, fazíamos Faculdade e portanto chegávamos tarde em casa. Cada um que chegava, trazia uma coisa. Ora leite, ora pãezinhos quentes, ora doces ou frutas, sucos etc.. Tinha dia que a “ceia” era variada, mas tinha dia que todos tinham a mesma ideia e só tinha uma coisa.  Por exemplo, teve um dia que todos compramos bananas. Não tinha outra coisa.
No meio da sala tínhamos uma mesa de fórmica com 4 cadeiras, ao redor da qual sentávamos para contar o que nos tinha acontecido, naquele dia.
Esse amigo do meu chefe tinha se empregado numa empresa que administrava Clubes Sociais, sendo o principal deles, o Tortuga do Guarujá. Nesta altura ele já era Assessor do Presidente da empresa. No dia seguinte teria uma grande festa no clube e ele precisava ir muito bem vestido, mas não era necessária a gravata, pois afinal era um Clube na praia.  Como era mês de junho e já estava frio, sugerimos e ele foi comprar uma calça cinza, uma blusa vermelha, de gola “rolê” e um blazer azul-marinho. Na época era tudo que tinha de chique-esportivo.
Quando eu cheguei em casa, trazendo um litro de leite, por volta das 23:30 h ele estava mostrando as roupas para meu irmão. Começaram a rir de mim, porque ele tinha subido com um litro de leite e meu irmão também. Rimos muito e então insistimos com ele, para vestir a roupa, para ver se aprovávamos o “rico” traje, que ele usaria na manhã seguinte. Ele vestiu a roupa nova e sentamos em volta da mesa para conversar e tomar nosso leite. Ainda faltava um colega, o namorado da minha prima.
Quando ele entrou, começamos a rir, porque ele também havia trazido um litro de leite, que vinha naquelas embalagens “novas”, em caixinhas, em forma de pirâmide. Quando ele viu os outros 3 litros de leite, ele jogou o dele sobre a mesa, como que lamentando. Acontece que a embalagem abriu e todo o litro de leite foi parar na roupa nova do nosso colega, que também usava óculos e me lembro perfeitamente o leite escorrendo nas lentes dos óculos dele e a roupa nova – que deveria usar no dia seguinte –  branquinha de leite. Ah! Ah! Ah! Ah! Foi muito engraçado, como todo mal feito!
Ficamos até às três da manhã lavando e enxugando, a ferro, a roupa dele...

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Crônica 1 - Ultimo Tango

“Hoje resolvi postar a crônica de autoria de um amigo e grande colega de trabalho. Eu trabalhei por 10 anos na Cia. Melhoramentos de S.Paulo e ele deve ter trabalhado quase 30 e nossos trabalhos, muitas vezes, se interligaram, além de eu ter continuado acompanhando o trabalho dele, mesmo estando fora da Cia. Melhoramentos. 
O motivo dessa publicação é que hoje faz 30 anos da Guerra das Malvinas e amanhã o meu amigo faz aniversário.
É um pouco longa, mas não tem como resumi-la e nem como reparti-la, porque perderia o “valor”.
Aconselho que leem, pois vale à pena. Boa leitura!”

                                             ÚLTIMO  TANGO
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                                  Me tomaré el ultimo trago, sin nunca haberlo tomado;
                                          Me bailaré el ultimo tango, sin nunca haberlo bailado.
                                                                                                (José Carlos Neves)
       Outubro de 2006, domingo. Um aglomerado de umas 50 pessoas forma uma roda na calle Florida, bem na frente das Galerias Pacífico. No meio, um casal de bailarinos - ele, já passado dos 60 anos; ela, uns 45 - bailam tangos tradicionais, ao som de um play back já gasto pelo excesso de uso,  para uma platéia na qual predominam turistas brasileiros. Prestes a terminar a performance, um terceiro bailarino - talvez reserva, ou empresário da dupla - começa a passar o chapéu; alguns contribuem com algumas moedas; outros se retiram antes que o chapéu chegue até eles. Um pouco mais afastado, o meu amigo Trasmontano apenas confere - talvez pela última vez - a repetição da cena, como já  havia feito dezenas de outras vezes. Se não o fizesse, seria como se não houvesse estado em Buenos Aires. A cidade, para ele, sempre começava por ali: Florida, esquina com Av. Cordoba. Já havia entrado nas Galerias Pacifico, dado uma volta no seu Centro Cultural Jorge Luis Borges; uma vista d'olhos pelas lojas elegantes - e também cheias de brasileiros - e comido um lanche que lhe serviu de almoço. Continuando por Florida, em direção a Lavalle, mais uma aglomeração, um pouco menor, desta vez em volta de uma harpa, tocada por uma harpista, aparentemente paraguaia. Avançando mais uns 50 metros, um casal de crianças romenas, de uns 3 a 5 anos - pareceu-lhe que se renovavam todos os anos - conseguiam arrancar alguns acordes de 2 pequenos e envelhecidos acordeões, acompanhando-se, em suas ainda destreinadas vozes infantis, no que parecia ser alguma canção folclórica, que iam interrompendo na medida em que lhes chegava alguma moeda; não tinham empresário à vista, nem platéia que parasse para ouví-los; só passantes. Mais uma quadra, e já estava no, outrora, mais famoso cruzamento de calles de peatones de B. Aires: Florida y Lavalle. Ali, mais uma pequena multidão - dificultando os que apenas queriam passar - assistia a um conjunto de bolivianos, ou talvez peruanos, de música andina, em seus trajes e instrumentos típicos. Também não era novidade para o meu amigo que, já um pouco cansado de caminhar, venceu mais 4 quadras da deteriorada e decadente Lavalle, até 9 de Julio, e tomou um táxi rumo ao hotel, próximo à Recoleta. Havia chegado de São Paulo naquele dia, mas pareceu-lhe que ali vivia desde muitos anos atrás. De repente, voltou a viajar, mas, desta vez, no tempo...

     ... Maio de 1980, domingo. O aeroporto de Ezeiza, de Buenos Aires, arrepiava de turistas argentinos que retornavam de todas as partes do mundo, e transformavam o grande hall das esteiras da entrega de bagagens no que parecia ser um grande armazém conjunto da Philips, Panasonic, Sony, e tantas outras marcas de eletrodomésticos, principalmente de TV a cores. O sistema de imagens coloridas já existia no país desde a Copa do Mundo de 1978, mas a Argentina ainda não produzia os televisores. Os argentinos viviam o clímax do período de la plata dulce, talvez mais conhecido pela expressão "deme dos" tão familiar aos comerciantes brasileiros da época. A economia vivia então seu momento mágico, com um plano econômico, sob a batuta de um ministro da economia com um nome ainda mais mágico: Martinez de Hoz. O dólar sub-valorizado - como também o foi durante alguns anos do Plano Real - fazia  da Argentina um dos países mais caros do mundo, e espalhava seus habitantes por todo o planeta, a fazer turismo, e a fazer de conta que também eram os mais ricos do mundo. Como haviam ganho a Copa de 1978, eram também os melhores do mundo. Só não podia ser o maior país do mundo, porque esse status o reservavam - sempre em tom de certa ironia - para o Brasil. E foi esse panorama que o meu amigo Trasmontano encontrou na Argentina ao fazer a  sua primeira viagem das 126 que faria a esse país, por trabalho, entre 1980 e 2006.

      Acompanhado do Luiz Bernardo, seu companheiro de trabalho, brasileiro, mas também ele descendente de trasmontanos - e marinheiro de primeira viagem ao exterior - ambos se assustaram com a primeira visão de B. Aires, desde o traslado do aeroporto até a hospedagem no Lancaster, hotel quase centenário, na Av. Cordoba, com a Reconquista. A viagem demorava um pouco mais de uma hora – a autopista começava, então, a ser construída - e o táxi cobrava em torno US$ 60,00, o primeiro susto. Outros viriam com os preços de uma Coca Cola a US$ 4,00; um café a US$ 3,00 (hoje, todos custam um terço). Pela proximidade, a primeira caminhada os levaria pela Av. Cordoba, calles Florida, Lavalle, Corrientes – la que nunca se duerme - Av. 9 de Julio, la más ancha del mundo, até o Restaurante La Estancia, o preferido do meu amigo, por durante mais de 20 anos. A segunda forte impressão foi dada pela incrível quantidade de gente nas ruas do centro, num domingo à tarde, a encher restaurantes - quase todos com fila de espera -  e a formar enormes filas para entrar nos muitos cinemas da Lavalle, uns quinze, em quatro quadras. Parecia que todos os argentinos que não haviam saído ao exterior para comprar televisores, ou fazer turismo, haviam decidido ir ao futebol, ou ocupar pacificamente todo o Centro. Era tanta gente que tornava-se difícil caminhar num retângulo - de umas 10 por 15 quadras - que tinha, como lados-limite, a Av. Callao - desde a Santa Fé ao Congreso - a Av. de Mayo, desde Congreso até a Casa Rosada; a Av. Leandro N. Alem, desde a Casa Rosada à Av. Maipu, continuada pela Plaza San Martin, até Santa Fé, que fecha o retângulo na Callao. Os dois companheiros descobriram naquele mesmo domingo que os argentinos tinham, além do tango - já um pouco decadente -  algumas paixões fundamentais: viajar, futebol, cinema, comer una parrillada, jogar conversa fora - falando de como eram superiores a quase todos e a tudo - em confiterias, em pequenos boliches, ou onde houvesse dois ou mais porteños, que se acreditavam britânicos, mas que se comportavam como italianos nos seus gestos e tom de voz.

       Não, não havia shopping centers, nem Puerto Madero; não havia DVD, nem lan houses para a internet, nem o Village, na Recoleta; o Luis Bernardo tampouco voltaria a B. Aires, mas o Trasmontano retornaria muitas outras vezes - só, na maioria delas, ou com outros companheiros, algumas poucas - e acompanharia as muitas transformações pelas quais ainda passaria a Argentina e sua capital. A cada vez que voltava a B. Aires, a cidade se mostrava infinita na sua capacidade de surpreender o meu amigo, quer pelo urbanismo planejado como um tabuleiro de xadrez; quer por sua arquitetura européia - que só encontra alguma similaridade em Montevidéu -  quase única na América Latina; quer por sua intensa atividade cultural; quer pela quantidade de livrarias - na época, quase tantas como em todo o território brasileiro - quer pela civilidade de suas confiterias, onde se podia passar toda uma tarde bebericando um vermouth, um , um expresso, ou um cortado, acompanhados de uma media luna, escrevendo, lendo, ou conversando; quer pela quantidade de grandes salas de cinema, teatros, e teatros de revista - quase um por quadra da Av. Corrientes - quer pela elegância no vestuário, feminino ou masculino; quer pelas barulhentas inchadas de River e Boca Juniors, nas tardes ou noites de futebol; quer por suas frondosas e centenárias árvores espalhadas por muitos espaços da urbe; quer pelos muitos ícones da metrópole representados pelo Teatro Colón - templo da música erudita - pelo Obelisco, referência de todas as direções do grande Centro; pelo luxuoso Cementério de la Recoleta, rodeado por caríssimos e disputados restaurantes; pelas luxuosas lojas de moda das calles Santa Fé e Florida; pelo Parque Palermo, imensa reserva de árvores, lagos, sombra, oxigênio, relaxamentos físicos, práticas atléticas, convívio com a natureza, e busca da paz; pela Feira das Pulgas, de Santelmo, tão antiga quanto as antiguidades que lá são negociadas, e quanto o próprio bairro; pelos Caño 14, e Viejo Almazén, santuários do tango tradicional; pelo Barrio de la Boca, com suas cantinas tipicamente italianas, e seu trepidante estádio de La Bombonera, casa do Boca Juniors; pelo Caminito, tema de tango e nostálgica viela do passado, em la Boca; pelo Luna Park, ginásio que servia a todos os grandes espetáculos esportivos, circenses e musicais; pelo Jockey Club e Rural, onde se reunia a alta sociedade bonairense, para equitação, corridas, pólo, desfiles ou mostras de gado; pela Plaza del Congreso, com suas fontes de jatos de água e luzes bailantes; pela Casa Rosada, onde se alternavam, no plantão do poder, os populistas, caudilhos, ditadores, democratas - civis ou militares - agentes, ou às vezes vítimas, das grandes convulsões e transformações do país.

       Como toda a mágica, a ilusão da plata dulce durou muito pouco tempo e, com ela, saiu de cenário o seu mágico, Martinez de Oz . Afinal, os mágicos só são mágicos enquanto dão à platéia uma ilusão de verdade na mágica. É interessante que, enquanto esta durou, o povo argentino vivia como que hipnotizado, como se também estivesse sob os efeitos da mágica. Videla, plantonista no poder, naquele período, vivia momentos gloriosos de déspota esclarecido. Afinal, a Argentina havia sido campeã mundial, em seu reinado,  e calava todos os movimentos de protesto e resistência que haviam surgido, desde logo após a saída do poder de Domingos e Isabelita Perón, através da falsa ilusão de uma moeda forte, não porque o mercado a fez forte, mas porque ele a fez assim por decreto. A hipnose acabaria rapidamente, e o recrudescimento da inflação - flagelo maior de todos os países latino-americanos, até em torno de 1995 - fez com que o sentimento de riqueza do povo argentino se transformasse num pesadelo. Os mais cautos haviam-se protegido com as transferências de dólares para paraísos fiscais - uma prática também comum aos mais abastados da América  Latina - mas a grande maioria viu-se empobrecida, em curtíssimo tempo, com a desvalorização do peso, e a inflação galopante. Não tardaria para que o povo saísse às ruas e enchesse as praças com seus protestos. Foi então que Galtiere, o novo general de plantão no poder, resolveu não só parar os protestos, como conclamar à união a todos os argentinos em torno de um valor cívico-patriótico maior: a declaração de guerra à Inglaterra, para retomada das Islas Malvinas. Os meios de comunicação, a serviço do governo, passavam a sensação de iminente vitória das forças argentinas, e o povo vibrava com o heróico comportamento de suas tropas, dava vivas aos militares que governavam o país. Só quando, passados uns meses, os soldados já demoravam a retornar às suas casas, e a guerra, que se anunciava vitoriosa, nunca acabava, é que o povo se deu conta de que mais uma vez havia sido enganado: as Faulklands continuaram com a Inglaterra; as famílias argentinas sem muitos de seus filhos, e o orgulho nacional estraçalhado. Para manter-se na cadeira do poder, tudo era válido para civis ou  militares. Os fins sempre justificavam os meios. O meu amigo Trasmontano já conhecera esse jogo de perto em seu próprio país, com Salazar; no Brasil, também com vários generais; no Chile, idem, com Pinochet.

       A Argentina não se meteria em novas aventuras militares, mas ainda sofreria muito - já nas mãos dos civis - com vários outros planos econômicos - lembram de algum outro país? -  como o Austral, que viria logo depois da guerra, sempre carregados de muita expectativa de que um novo milagre de desenvolvimento e crescimento se anunciava para o país. Foi assim na gestão de Alfonsin, na de Menem, e na de Dualde e... outros que se seguiriam até Kirchner. A auto-estima do povo subia e baixava rapidamente, a cada novo plano ou governo que se anunciava. Na verdade, a descrença nos políticos chegou a tal nível que os argentinos - o povo mais politizado da A. Latina - perderam até a capacidade de escolher a quem votar. O amigo Trasmontano, por suas freqüentes viagens, acompanharia a gradativa e lenta transformação de uma nação - que esteve entre as 4 ou 5 mais ricas do planeta, até a década de 1950 - com um povo culto, altivo, e orgulhoso da sua importância no mundo, num país sem rumo, decadente, sucateado em sua economia, e sem líderes com força e carisma para devolver-lhes a esperança. Na última eleição, elegeram a Kirchner, não porque este fosse um líder nacional, mas porque era o candidato que mais se aproximava de Lula, o novo ídolo dos argentinos. Eles, finalmente, prestavam uma homenagem ao Brasil, reconhecendo a "capacidade" de escolha e "superioridade" política dos brasileiros, já que nunca reconheceram a superioridade de Pelé sobre Maradona.

       As transformações não ocorriam apenas no âmbito político e econômico. Elas, ainda que mais lentas, passariam também a perceber-se no comportamento familiar e social, nos hábitos de consumo, de lazer, na expressão cultural, bem como no deslocamento físico do conjunto de todo esse processo social. O agente impulsionador de todas essas mudanças seria o shopping center. O meu amigo não se lembra do ano exato, mas só em torno de 1990 - ano mais, ano menos -  apareceria o primeiro, o de Palermo, seguido pelo Galerias Pacífico, Patio Burriche, Alcorta, Unicentro, e vários outros que ele nunca chegaria a visitar. Os Shoppings foram abrindo e levando os cinemas de rua, as livrarias, as lojas de luxo e de grifes, os pequenos restaurantes, os brinquedos eletrônicos, todos para dentro de si. Como em todo o mundo, as famílias passariam a utilizá-los como opção de lazer e socialização. Era o novo lugar para passar um dia inteiro, se necessário, com conforto e segurança. O aparecimento de outros centros de lazer diferenciados, como Puerto Madero, não foram suficientes para frear a força avassaladora dos shoppings. Ruas ou avenidas importantes como 9 de Julio, Florida, Lavalle, Cordoba, Corrientes e Santa Fé, ícones do comércio e do lazer, foram feridas de morte nas suas atividades. Na música, até o tango sofreria importantes mutações. Com o surgimento de Piazzola, este passaria a dar-lhe sonoridade e cores mais eruditas, afastando-o do tango tradicional. Piazzola ficaria muito tempo proscrito, rechaçado pelos conservadores do tango de raiz, enquanto os eruditos lhe torciam o nariz por considerá-lo tangueiro. O reconhecimento unânime, como um dos grandes musicistas argentinos, só chegaria quase ao final de sua vida, quando então já era aplaudido por refinadas platéias do Teatro Colon, ou pelas puristas do El Caño 14. Nos hábitos culinários, os porteños, que antes só comiam em restaurantes - pequenos, médios, ou grandes - habituaram-se, para pior, às lanchonetes e ao fast food que os foram substituindo. Até os dogmáticos e tradicionais restaurantes de parrilla - parte da alma argentina - vêm perdendo espaço para os rodízios brasileiros, suprema afronta a um país que se reverenciava e referenciava por sua carne.

       Desde 2002, as viagens do Trasmontano, a Buenos Aires, foram  reduzidas para uma média de duas por ano, por causa das mudanças de trabalho, viagens apenas justificadas porque prestava consultoria a uma empresa argentina, da qual se desligaria nesta viagem, dando-lhe um nostálgico tom de despedida a cada aperto de mão, a cada passo, a cada rua, a cada mirada, a cada som, a cada esquina, a cada árvore, a cada monumento, a cada praça, a cada confiteria, a cada restaurante. Não quis ligar para nenhum dos muitos amigos que fizera nos seus contatos comerciais, durante  26 anos. Apesar da imagem que se tem do argentino comum, de arrogante, presunçoso, nariz empinado, complexo de superioridade, o meu amigo nunca teve problemas de relacionamento com eles, colecionando amigos, desde o primeiro, o Cola - humilde garçom do La Estancia - até presidentes de importantes empresas. É verdade que o ambiente mais culto do meio editorial favorecia a amizade e o cavalheirismo com que era tratado, mas ele teve muitas provas de que esse sentimento se prolongava para fora dos contatos meramente comerciais. Um dia, um dos seus concorrentes  - colombiano - do meio gráfico, disse-lhe que o invejava, porque ele era, certamente, o mais importante protagonista da história das relações comerciais brasileiras com a América Latina, no meio gráfico-editorial. É verdade que muita gente no Brasil também o via assim, mas o reconhecimento nunca lhe seria oficialmente explicitado. Mas, nesta que provavelmente terá sido sua última viagem a Buenos Aires, ele não quis contatar a nenhum dos amigos. Talvez para não incomodar; talvez porque tenha  pressentido que, se o fizesse com algum, seria para, nele, também despedir-se de todos. Ficaria assim! Seria melhor deixar no ar a justificativa e a esperança de um dia voltar.

      ... O amigo Trasmontano desce do táxi na Recoleta para comer um último lanche, antes de recolher-se ao hotel. É tomado por uma acentuada nostalgia, como prenúncio de definitiva despedida. Caminha alguns metros pela praça e, ao lançar o olhar para o outro extremo, vê, como sempre, a Feira de Artesania que começa a desmontar suas barracas, como faz todos os fins de tarde, de todos os fins de semana. Espalhadas por toda a praça, várias estátuas humanas - hoje comuns nas demonstrações de arte de rua - tentam chamar a atenção, limitadas pela sua quase imobilidade. Ao lado, mais uma aglomeração de pessoas forma uma roda, abrindo espaço para mais um casal de bailarinos de tango milonguero. Incidentalmente, dando um toque de humor à performance, um cão avança, repentinamente, e abocanha o chapéu em que estão depositadas as contribuições, correndo com ele. Sua dona, desesperada, corre atrás e consegue trazer o chapéu de volta, recolhendo algumas moedas e notas que foram caindo pelo caminho,  para alívio dos bailarinos - que haviam interrompido a milonga -  e aplausos da platéia. Anda mais uns passos, e um velho violonista  tenta buscar os acordes certos para Greensleeves, e o meu amigo deixa-lhe uma moeda para compensar-lhe o esforço. Está agora debaixo de uma das mais antigas e frondosas árvores de B. Aires, cujos imensos galhos, estendidos como tentáculos de polvo, necessitam ser escorados por grossos troncos, em forma de estacas, para que não se dobrem e quebrem sob seu próprio peso. De repente, como que saído por detrás da árvore, um bandoneon arrabalero inicia os acordes de Balada Para Un Loco, de Piazzola. E o meu amigo Trasmontano, mesmo sem mover-se, como loco piantao, piantao, dança seu último tango, sem saber ao certo se o seu par é a música, o  bandoneon, a árvore, a praça, ou Buenos Aires.

JCN – OUT – 2006