quarta-feira, 6 de março de 2013

Causo 81 O anjo da guarda do tio Luiz



Priscilla de Freitas Peretta
            Bom, vamos ver se vão aceitar causo ouvido (e não vivido, como se era de esperar) de uma jovem (não das mais jovens) representante desta família Freitas.
            Assim eu gravei o que ouvi do meu querido tio Luiz, que já não está mais entre nós, e com o qual eu gostava muito de conversar, pelo seu jeitinho manso e sempre espirituoso. Certamente, muitos fatos foram distorcidos em minha memória, pelo tempo e pela pouca idade que eu tinha quando ele me contou. Corrijam-me os que viveram de perto. O fato é que a estória me agrada muito assim mesmo como lembro dela, ainda que eu possa tê-la assimilado de forma um tanto quanto fantasiosa...
            Num dos memoráveis encontros de fim de ano da família inteira, que costumavam acontecer em Araxá ou Frutal e que significavam os melhores dias do ano para nós, então pequenos, lembro que falávamos sobre o vício do cigarro, quando tio Luis começou a contar-me.
            Era sua primeira viagem para a Escola Agrotécnica de Muzambinho, acompanhado do irmão mais velho Daniel – meu pai – que já estudava lá e que tinha vindo para as férias em Araxá. Ao contrário dos irmãos, tio Luiz, então com apenas 12 anos, não tinha a prática de pegar o trem e acabou perdendo-o numa das paradas, ao descerem não sei exatamente para quê, talvez para a baldeação em Ribeirão Preto ou Casa Branca – que se fazia para ir a Uberaba. Desesperado, já chorando por ter-se perdido dos outros, foi abordado por um guarda da estação que resolveu ajudá-lo, levando-o à casa de um seu amigo taxista que morava perto da estação. O guarda pediu que o taxista levasse o menino até a próxima estação – pois o carro, sendo mais rápido, seguramente chegaria antes do trem – para que ele pudesse pegar o trem novamente.
            Assim, tudo correu bem e o tio Luiz entrou no trem, aliviado, mas ainda um tanto assustado pelo ocorrido. Ao seu lado, estava sentada uma senhora mais velha que viu seu estado e começou a conversar com ele. Para acalmá-lo, ofereceu-lhe um cigarro, que naquele tempo era considerado um bom remédio para várias coisas, inclusive para acalmar. “Assim comecei a fumar”, me disse o tio. Mas a estória não acaba aí. Voltando a Araxá, nas férias creio, contou a sua mãe, vovó Edith, como o guarda da estação tinha sido gentil com ele. Vovó, muito agradecida, providenciou uns doces para que o tio levasse ao homem quando retornasse a Muzambinho, passando por aquela estação.
            E assim foi. Chegando na tal estação, o menino colocou-se a procurar o guarda e nada. Foi perguntar a outros que trabalhavam ali por um senhor alto, negro, vestido com um uniforme de guarda, que o tinha ajudado. “Mas não temos nenhum empregado negro aqui”, ouviu. Resolveu então ir até a casa do taxista, ali perto. Porém, essa parte do causo ficou um pouco obscura pra mim. Não me lembro se não encontrou ninguém em casa ou se o homem que morava ali disse que não  conhecia o menino, nem o tal guarda. Mas lembro que a casa e o carro na garagem tinha, igualzinho o tio se lembrava. Acho que era isso. Concluindo sobre o mistério, com seu sorriso sereno, tio Luiz me disse: “Por isso, tenho certeza de que meu anjo da guarda é negro”. A isso, seguiu-se um curto silêncio, logo acompanhado de uma nota do violão. E eu achei tão bonito tudo isso, ainda fico emocionada quando me lembro do jeito dele de contar causos e de tocar violão.
            Contando isso ao guardião-mor dos causos de família, tio Nica, outra bela parte se acrescenta a esta estória. Trata-se da música, muito apreciada pelo tio Luiz, “Angelitos negros”, conhecida na interpretação de Antonio Machin, mas que foi criada sobre versos do poema do venezuelano Eloy Blanco, nascido no século XIX. Dizem que na Basílica de la Macarena estão las Vírgenes de Hispanoamérica, dentre as quais a Virgen de Coromoto, patrona da Venezuela. Um quadro desta Virgem feito pelo pintor Pedro Centeno Vallenilla teria inspirado o grande poeta que, ao vê-la rodeada de anjos loiros, morenos e índios, sentiu a falta dos anjinhos negros.
            Certamente o mistério do Anjo Negro me impressionou tanto que não prestei atenção à música que tio Luiz cantou depois. Nada como a memória compartilhada para tornar o passado mais vivo.           
A música diz:

Pintor nacido en mi tierra
con el pincel extranjero,
pintor que sigues el rumbo
de tantos pintores viejos.
Aunque la virgen sea blanca,
píntame angelitos negros,
que también se van al cielo
todos los negritos buenos.
Pintor, si pintas con amor
por qué desprecias tu color
si sabes que en cielo
también los quiere Dios.
Pintor de santos de alcoba,
si tienes alma en el cuerpo,
por qué al pintar en tus cuadros
te olvidaste de los negros
Siempre que pintas iglesias,
pintas angelitos bellos,
pero nunca te acordastes
de pintar un angel negro.
Siempre que pintas iglesias,
pintas angelitos bellos,
pero nunca te acordaste
de pintar un ángel negro.

9 comentários:

  1. Este é o meu irmão Luiz, que me ensinou praticamente tudo, inclusive a viver. Difícil segurar as lágrimas...

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    1. João, aproveite a oportunidade para contar outros causos do Tio Luiz.
      Muito obrigado pelo comentário.
      Abraços
      Nicanor

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  2. Freitas
    Você não tem um time, uma equipe, um plantel; você tem uma verdadeira plêiade de sensíveis "causeiros". Eu me lembro de haveres falado desse teu irmão várias vezes, e que também puseste teu violão de lado, por não teres mais a sua parceria. A Priscila parece acompanhar-te na mesma emoção. E que bela idéia postar a adaptação de um dos mais belos poemas de Andrés Eloy Blanco. Boa parte dos venezuelanos o julga injustiçado por não fazer parte dos programas de ensino, porque os intelectuais o acham demasiado popular, mas é nisso que reside toda a beleza da sua poesia. Assim mesmo, só é comparado ao seu xará e compatriota Andrés Bello, este com uma intelecutalidade mais eclética, como poeta, jurista e humanista. Parabéns à Priscila por trazer aos brasileiros parte dessa tão desconhecida cultura espalhada pela América Latina. Abraços - José Carlos - 07/03/13

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    1. Zé Carlos, essa sobrinha poderia participar da AIL, pois ela tem contos publicados em livros da USP. Muito obrigado pelo comentário. Abraços. Freitas

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  3. Caro amigo.
    É sempre bom ler estes causos que vc nos envia, e a Priscila soube contar este do "tio Luiz" de forma a criar muito interesse de nós, leitores.
    Um abraço. César.

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    1. Muito obrigado pelo comentário e pelo elogia à Priscilla.
      Um abraço
      Freitas

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  4. Gostei muito de me lembrar deste caso que o Luiz sempre contava, principalmente escrito pela Priscila.
    Adorei.
    Beijos,
    Tia Vania

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  5. Aeeee Pri, adorei o texto e mais ainda a sensação de "ouvir" a mansa voz do Tio Luiz contando essa estoria! Clau

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    1. Vou pedir para o Dani me enviar o filminho que fez do Tio Luiz contando a piada do tiro no viadinho... assim podemos "matar a saudade" da voz mineirinha dele...

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Obrigado pelo seu comentário! É sempre muito bem vindo.
Nicanor de Freitas Filho