Priscilla de Freitas Peretta
Bom, vamos ver se vão aceitar causo ouvido (e não vivido,
como se era de esperar) de uma jovem (não das mais jovens) representante desta
família Freitas.
Assim eu gravei o que ouvi do meu querido tio Luiz, que
já não está mais entre nós, e com o qual eu gostava muito de conversar, pelo
seu jeitinho manso e sempre espirituoso. Certamente, muitos fatos foram
distorcidos em minha memória, pelo tempo e pela pouca idade que eu tinha quando
ele me contou. Corrijam-me os que viveram de perto. O fato é que a estória me
agrada muito assim mesmo como lembro dela, ainda que eu possa tê-la assimilado
de forma um tanto quanto fantasiosa...
Num dos memoráveis encontros de fim de ano da família
inteira, que costumavam acontecer em Araxá ou Frutal e que significavam os
melhores dias do ano para nós, então pequenos, lembro que falávamos sobre o
vício do cigarro, quando tio Luis começou a contar-me.
Era sua primeira viagem para a Escola Agrotécnica de
Muzambinho, acompanhado do irmão mais velho Daniel – meu pai – que já estudava
lá e que tinha vindo para as férias em Araxá. Ao contrário dos irmãos, tio Luiz,
então com apenas 12 anos, não tinha a prática de pegar o trem e acabou
perdendo-o numa das paradas, ao descerem não sei exatamente para quê, talvez
para a baldeação em Ribeirão Preto ou Casa Branca – que se fazia para ir a
Uberaba. Desesperado, já chorando por ter-se perdido dos outros, foi abordado
por um guarda da estação que resolveu ajudá-lo, levando-o à casa de um seu
amigo taxista que morava perto da estação. O guarda pediu que o taxista levasse
o menino até a próxima estação – pois o carro, sendo mais rápido, seguramente
chegaria antes do trem – para que ele pudesse pegar o trem novamente.
Assim, tudo correu bem e o tio Luiz entrou no trem,
aliviado, mas ainda um tanto assustado pelo ocorrido. Ao seu lado, estava
sentada uma senhora mais velha que viu seu estado e começou a conversar com
ele. Para acalmá-lo, ofereceu-lhe um cigarro, que naquele tempo era considerado
um bom remédio para várias coisas, inclusive para acalmar. “Assim
comecei a fumar”, me disse o tio. Mas a estória
não acaba aí. Voltando a Araxá, nas férias creio, contou a sua mãe, vovó Edith,
como o guarda da estação tinha sido gentil com ele. Vovó, muito agradecida,
providenciou uns doces para que o tio levasse ao homem quando retornasse a
Muzambinho, passando por aquela estação.
E assim foi. Chegando na tal estação, o menino colocou-se
a procurar o guarda e nada. Foi perguntar a outros que trabalhavam ali por um
senhor alto, negro, vestido com um uniforme de guarda, que o tinha ajudado. “Mas
não temos nenhum empregado negro aqui”, ouviu.
Resolveu então ir até a casa do taxista, ali perto. Porém, essa parte do causo
ficou um pouco obscura pra mim. Não me lembro se não encontrou ninguém em casa
ou se o homem que morava ali disse que não
conhecia o menino, nem o tal guarda. Mas lembro que a casa e o carro na
garagem tinha, igualzinho o tio se lembrava. Acho que era isso. Concluindo
sobre o mistério, com seu sorriso sereno, tio Luiz me disse: “Por isso,
tenho certeza de que meu anjo da guarda é negro”.
A isso, seguiu-se um curto silêncio, logo acompanhado de uma nota do violão. E
eu achei tão bonito tudo isso, ainda fico emocionada quando me lembro do jeito
dele de contar causos e de tocar violão.
Contando isso ao guardião-mor dos causos de família, tio
Nica, outra bela parte se acrescenta a esta estória. Trata-se da música, muito
apreciada pelo tio Luiz, “Angelitos negros”, conhecida na interpretação de
Antonio Machin, mas que foi criada sobre versos do poema do venezuelano Eloy
Blanco, nascido no século XIX. Dizem que na Basílica de la Macarena estão las
Vírgenes de Hispanoamérica, dentre as quais a Virgen de Coromoto, patrona da
Venezuela. Um quadro desta Virgem feito pelo pintor Pedro Centeno Vallenilla
teria inspirado o grande poeta que, ao vê-la rodeada de anjos loiros, morenos e
índios, sentiu a falta dos anjinhos negros.
Certamente o mistério do Anjo Negro me impressionou tanto
que não prestei atenção à música que tio Luiz cantou depois. Nada como a
memória compartilhada para tornar o passado mais vivo.
A música diz:
Pintor
nacido en mi tierra
con el
pincel extranjero,
pintor que
sigues el rumbo
de tantos
pintores viejos.
Aunque la virgen sea blanca,
píntame
angelitos negros,
que también
se van al cielo
todos los
negritos buenos.
Pintor, si
pintas con amor
por qué desprecias
tu color
si sabes que
en cielo
también los
quiere Dios.
Pintor de
santos de alcoba,
si tienes
alma en el cuerpo,
por qué al
pintar en tus cuadros
te olvidaste
de los negros
Siempre que
pintas iglesias,
pintas
angelitos bellos,
pero nunca
te acordastes
de pintar un
angel negro.
Siempre que
pintas iglesias,
pintas
angelitos bellos,
pero nunca te acordaste
de pintar un ángel negro.
Este é o meu irmão Luiz, que me ensinou praticamente tudo, inclusive a viver. Difícil segurar as lágrimas...
ResponderExcluirJoão, aproveite a oportunidade para contar outros causos do Tio Luiz.
ExcluirMuito obrigado pelo comentário.
Abraços
Nicanor
Freitas
ResponderExcluirVocê não tem um time, uma equipe, um plantel; você tem uma verdadeira plêiade de sensíveis "causeiros". Eu me lembro de haveres falado desse teu irmão várias vezes, e que também puseste teu violão de lado, por não teres mais a sua parceria. A Priscila parece acompanhar-te na mesma emoção. E que bela idéia postar a adaptação de um dos mais belos poemas de Andrés Eloy Blanco. Boa parte dos venezuelanos o julga injustiçado por não fazer parte dos programas de ensino, porque os intelectuais o acham demasiado popular, mas é nisso que reside toda a beleza da sua poesia. Assim mesmo, só é comparado ao seu xará e compatriota Andrés Bello, este com uma intelecutalidade mais eclética, como poeta, jurista e humanista. Parabéns à Priscila por trazer aos brasileiros parte dessa tão desconhecida cultura espalhada pela América Latina. Abraços - José Carlos - 07/03/13
Zé Carlos, essa sobrinha poderia participar da AIL, pois ela tem contos publicados em livros da USP. Muito obrigado pelo comentário. Abraços. Freitas
ExcluirCaro amigo.
ResponderExcluirÉ sempre bom ler estes causos que vc nos envia, e a Priscila soube contar este do "tio Luiz" de forma a criar muito interesse de nós, leitores.
Um abraço. César.
Muito obrigado pelo comentário e pelo elogia à Priscilla.
ExcluirUm abraço
Freitas
Gostei muito de me lembrar deste caso que o Luiz sempre contava, principalmente escrito pela Priscila.
ResponderExcluirAdorei.
Beijos,
Tia Vania
Aeeee Pri, adorei o texto e mais ainda a sensação de "ouvir" a mansa voz do Tio Luiz contando essa estoria! Clau
ResponderExcluirVou pedir para o Dani me enviar o filminho que fez do Tio Luiz contando a piada do tiro no viadinho... assim podemos "matar a saudade" da voz mineirinha dele...
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