sábado, 19 de abril de 2014

Crônica 23 Monólogo ao Espelho

                                                                
José Carlos Neves
 Quero pensar em mim, fora de mim;
                                                           E achar-me, onde jamais me procurei.  (JCN)

---- Porque me olhas assim? Pareço-te estranho; talvez um ET; um fantasma; ou terei a braguilha aberta?

---- Sinceridade!? Eu também quero saber quem sou. Não sei se sou real, ou uma ficção. Sinto-me enredado em muitas histórias que realmente vivi, mas que eu não escolhi viver; e nem sei porque fui parar nelas.

---- Ei, tu! Sim, tu! Acho que te conheço de algum lugar, mas não sei de onde. Esta merda de memória me prega cada peça! E o que me falta é peça! Um parafuso, talvez? Anda! Ajuda-me a abrir este arquivo.

---- Já sei; eu não tenho mais memória; só uma vaga lembrança. Mas tenho a sensação de que nos conhecemos a vida toda. Sinto que em algum momento me sequestraste, e que passei a depender de ti; estranho é que  eu gosto de ti, e  dessa dependência. Estarei com a síndrome de Estocolmo?

---- Sei lá! Tenho certeza de que já andamos por lá; e também por muitas outras cidades e países, próximos e longínquos; de cá, de lá, daí, de acolá, de todos os continentes.

---- Então!? Diz-me quem és! Liberta-me ou mata-me. Não quero deixar-te, mas não quero ser teu prisioneiro. Quero ter minhas próprias aventuras, viver minhas experiências, buscar meu próprio saber. Podes até seguir ao meu lado, mas não me tuteles mais.

---- Olha! Ainda não sei quem és, mas vou lembrar-me logo, logo. Portanto, é melhor que te apresentes por ti mesmo. Não estendas mais esta estúpida angústia de te pertencer, e não saber quem eu sou; ou quem tu és.

---- Ahh, lembrei de uma coisa: tu me tratas por meu amigo Trasmontano. Será um nome próprio, ou será um adjetivo gentílico? Acho que o termo me recorda algo mais; assim como trás...trás-os...Trás-os-Montes!!!

---- Então é isso!? Ei, não saias à francesa, não. Volta aqui! Senta aí, e ouve-me! Não é porque me descobri, que acabou a tua missão. Isso! Assim é melhor. 

---- Agora estou a perceber, pá! Eu não passo de um personagem das  tuas crônicas; de crônicas que eu não escrevi; e que só vivo nelas porque tu me inventaste, e me prendeste nos teus enredos e vivências. 

---- Mas, explica-me lá! Que eu me lembre, já viajamos juntos por cerca de 50 crônicas, e nunca assumiste nenhum protagonismo pessoal nelas. E olha que eu conheço muitos outros textos teus, nos quais, sim, tu és tu. Então, porque raios eu tenho que carregar as tuas histórias?

---- Já sei! Nas crônicas, tu não precisas dar-me voz. És um narrador das minhas vivências reais, então sou o que quiseres que eu seja. E como sou um simples trasmontano, como tu, achas que posso agir, e representar todas as tuas virtudes e defeitos (mais destes que daquelas), sem reclamar.

---- Agora entendo porque nós, personagens, somos tão explorados por vós,  autores. Se não tiverdes sucesso, a culpa é nossa porque não saímos do  nosso anonimato, e não soubemos crescer em vossas obras. Entretanto, se ganhardes um Nobel, o mérito é todo vosso porque nos criásteis já estrelas.

---- Não, não te sintas mal, pois sei muito bem que não ganhaste um tostão furado comigo. E como ganhares, se me tens escondido? Excepto a alguns amigos próximos, nunca me apresentaste; não sei se por vergonha de mim, ou de ti mesmo. E amigos não se arriscam a ser arautos da mediocridade.

---- Nunca terás teu milhão de euros por seres um Nobel. Há vários que conheceste pessoalmente, antes de criar-me, como a Eco, Llosa, Saramago, Marques, Paz. Então, eu seguirei apenas com milhões de quirelas e outras tantas mazelas, tuas e minhas, que terei para carregar.

---- Bons tempos aqueles em que fizeste tantas viagens com e pela literatura. Quase 30 anos, lembras-te? Vivias dela, mas nunca te atreveste a escrevê-la. Talvez por timidez; por insegurança; ou falta de valor mesmo!

---- E agora, que estás tão longe do mundo literário, tu me inventaste para seguires perto dele. Sou o teu elo com a literatura; e por isso te vejo mais perto de mim. Tu também me necessitas. Não sou apenas mais uma bengala para apoiares as tuas dúvidas e inseguranças.

---- As coisas agora estão claras p'ra mim. Como meu criador, sou a tua alma; sou o que tu foste, ou querias ter sido; sou como és, um ser vivido, experiente, envelhecido e cansado. Se depender de mim, serei o que ainda fores, na tua vida ou na tua literatura.

---- Fomos, somos e sempre seremos uma fusão de mentes e de caráteres, a confundir o que seja real ou ficção. Não sabemos mais quando és tu; quando sou eu. O mais provável é que tenhamos um só corpo e uma só alma.

JCN – ABR – 2014 – jcneves45@yahoo.com.br

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Nicanor de Freitas Filho