segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Causo 76 Gaijin


                                                                          A cara do ocidental,
                                                                          Sob a ótica do oriental.
          
José Carlos Neves     
                                                                                                                
      Em um mês e dia quaisquer de 1971, ao subir, ao lado da Eiko, uma ladeira de Ouro Preto, o meu amigo Trasmontano percebeu que um menino de 8 a 10 anos os acompanhava com discreta curiosidade; em seguida, veio mais um, e mais um e mais..., até que o primeiro – ao sentir-se protegido por um já bom número de amigos – não resistiu e começou a convidar, pública e sonoramente: “vem ver, vem ver,...vem ver a japonesa com outro cara!”. Pois é, o outro “cara” era o meu amigo; e a japonesa era a sua mulher. Para a garotada – e até para alguns adultos mais discretos – era ainda uma cena inusitada: ver um rosto oriental fazendo par com outro ocidental. É claro que ver turistas orientais nas ruas de Ouro Preto não era incomum, mas ver um casal misto era quase uma cena de circo. Casados naquele ano, e com mais  dois anos de namoro e noivado, ambos já haviam passado por situações parecidas, até mesmo em São Paulo, cujo cosmopolitismo não impedia as fortes barreiras sociais que um pequeno número de pioneiros ia rompendo gradativamente.

      Mas foi nessa cidade de tradicional família mineira que o meu amigo sentiu-se pela primeira vez um gaijin, do ponto de vista ocidental,  sem que ao menos a garotada soubesse da existência e significado dessa palavra. Para aquelas criaturas, o meu amigo não podia ser brasileiro; trasmontano, nem pensar; americano, russo, esquimó, extra-terrestre? Não! Ele era um CRNI – Cara de Raça Não Identificada, pois só um tipo raro assim é que poderia acompanhar a “japonesa”, além de outro “japonês”. Até 1957, quando o meu amigo emigrou de Portugal rumo ao Brasil, ele jamais havia visto um rosto oriental, desses com cara bem asiática, mesmo que ainda sobrevivessem algumas colônias portuguesas na Ásia, como Macau e Timor, além de os próprios portugueses haverem sido os primeiros europeus a entrarem no Japão,  e a terem um intenso relacionamento entre 1543 e 1639. Nos primeiros dias de Brasil, na sua inocência infanto-juvenil, ainda pensava que todos aqueles rostos diferentes pertenciam a alguma grande família, teoria reforçada pelo fato de que raramente via algum deles conversar com ocidentais. O meu amigo, ainda na sua limitada trasmontanice, não poderia imaginar que, num futuro não muito distante, iria juntar-se indelevelmente a essa “grande família”.

      Passados quase 40 anos depois do episódio de Ouro Preto, meu amigo Trasmontano olha  para seu filho de rosto mestiço, ao lado de sua namorada também mestiça, e pensa nos agora milhares de outros rostos mestiços, e que em breve – no Brasil - serão mais numerosos que os rostos orientais puros. É o mundo nikkei a absorver e a ser  absorvido pelo mundo gaijin. O meu amigo é agora dono de uma mercearia oriental, e não pode deixar de notar a cara de surpresa da maioria de seus clientes, ocidentais ou orientais, ao ver um rosto não oriental no comando da loja, a indicar que o extraordinário avanço inter-racial não impediu que ele continuasse duplamente gaijin,  do ponto de vista ocidental e oriental. Ele acredita que, dentro de uns 50 anos, serão raríssimos os traços puramente orientais no Brasil -  tal o poder de miscigenação por aqui existente – a menos que os asiáticos, reforçados de coreanos e chineses, redescubram o país como a terra do futuro e das oportunidades. De qualquer maneira, o meu amigo sente um enorme orgulho de ter sido um dos pioneiros da globalização genética em que se transformou o Brasil.

JCN – FEV -  2008 
                                   (Publicado na revista Mundo OK, da comunidade nikkey)

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Nicanor de Freitas Filho