José Carlos Neves
A meditação é a árvore dos ramos do pensamento;
À sua sombra viajamos através da vida e do firmamento. (JCN)
O meu amigo Trasmontano calça o
sapatenis, desce um lance de 3 ou 4 degraus, e alcança o jardim. Em silêncio,
sente os pés a pressionar o piso de cimento e observa os contornos dos
estreitos caminhos, reservados à circulação dos caminhantes, e ladeados por
canteiros e floridas árvores. Com os olhos semicerrados, intui, mais que vê,
vários outros vultos que, como ele, andam para cá e para lá em indefinidas
direções e passos, como se em catártico e coletivo transe buscassem algo
desconhecido. O meu amigo, numa suave passagem do plano real ao puramente
meditativo, de repente encontra-se num ambiente socrático, na acrópole de
Atenas, como humilde e maiêutico
discípulo a aprender ou inquirir de Sócrates sobre os mistérios da sabedoria do
homem sobre si mesmo e o universo. Uns segundos mais e outros vultos passam por
ele – talvez para aproveitar o mesmo cenário – os quais, por seu luto e
melenas, neles reconhece serem as mulheres do Chico e de Atenas.
Minutos antes, a psicóloga, monitora das
atividades, pedira a todos que saíssem para o jardim, acessível pelo fundo da sala, para que sentissem o que
poderia ser uma nova experiência para a maioria: um convite à meditação, em
contato com a natureza e seus sons, e à auscultação do seu próprio silêncio.
Era o segundo exercício do meu amigo sobre meditação, e mais uma de um rol de atividades oferecidos pela
PreventSenior, com o objetivo de prevenir enfermidades físicas ou psíquicas,
tão próprias da idade da maioria dos seus conveniados. Ele teria preferido
outra atividade, como literatura, coral ou teatro, ainda indisponíveis, por
isso fora levado quase à força pela sua mulher, esta sim mais habituada a esses
exercícios por sua natureza oriental. Como em todos os grupos de que o meu
amigo participa, voltados para a terceira idade, também neste predominam as
mulheres com maioria avassaladora. Ele entende que a maior parte dos homens,
por vergonha ou pelo tonto preconceito
de julgarem sua masculinidade
ofendida, se sentem constrangidos e demasiado jovens ou velhos para
participarem de atividades que julgam ser de mulheres. E assim se auto condenam
ao isolamento, ou à morte precoce, e a deixar às suas bravas esposas ou viúvas
a responsabilidade e a sapiência de substituí-los, e autopreservar-se por
quanto tempo a vida ainda lhes possa ser prolongada. Talvez já menos exigidas
por maridos, filhos e obrigações profissionais, finalmente, e com mérito,
encontram tempo para si mesmas.
...Dados alguns passos mais, uma
rosa, que ele vê transformar-se na Roselândia, onde quase 50 anos antes havia
pedido a Eiko, a sua amada flor oriental, em namoro. E ela própria, que
o acompanha nesta curta caminhada – a da vida é bem mais longa – pára para
observar uma árvore florida, que o meu amigo pronto transforma num imenso
jardim de cerejeiras em flor. Dois passos mais, e um girassol, já ligeiramente
murcho, de repente se traslada a um iluminado campo de coloridos, frescos e bem
vivos girassóis, como numa tela de Van Gogh, ou num filme de Kurosawa.
Avançando um pouco mais pelo jardim, os vultos das muitas mulheres a passear
pelas curtas e estreitas alamedas, e que em alternantes e intermitentes
sensações, lhe parecem, por vezes ninfas flutuantes sobre tranquilos lagos;
bacantes à procura de seus bem amados na penumbra das tavernas; valquírias
cavalgantes em busca de meritosos guerreiros ao prêmio do valhala; intrépidas
cruzadas a vagar pelas brumas de Avalon em defesa do Rei Arthur. Chega a ouvir
o som longínquo e suave de alguns acordes da medieval Greensleves, e cantarola
algumas notas a boca chiusa. Agora, 2 ou 3 frondosas árvores o transportam para
os bosques de Viena, onde bailará uma valsa de Strauss, ou se deslumbrará com uma ópera de Mozart. Um pouco
mais, e um estranho sistema de vasos comunicantes, montado por taquaras secas
numa das paredes, o levam até às noras de Sampaio, sua aldeia trasmontana,
a regar as hortas e a vida da sua infância.
Logo à
entrada, os participantes são convidados a tirar os sapatos e pisar descalços
sobre um tatame quadrado ladeado por cadeiras nos seus 4 lados. A psicóloga,
uma jovem adulta de idade não revelada, mas suficiente para liderar e comandar
idades que, somadas, ultrapassam 1000 anos. A sua postura corporal e cênica,
altiva, de movimentos suaves, teatrais, olhar profundo e penetrante, voz
alternadamente modulada em distintos decibéis, transmitem credibilidade e
carisma a todos os participantes. Ela sabe que tem a difícil tarefa de fazer
com que todos deixem fora da sala a
compreensível inibição daqueles que se encontram frente a frente pela primeira
vez, e com quem irão interagir durante várias sessões e, quem sabe, ter que
expor prazenteiras ou dolorosas confidências. Desde a primeira aula, ela lembra
ao meu amigo a sua gata persa, tricolor atartarugada que, com seu caminhar
senhorial de uma old lady, mas que com
felina agilidade, escala até a última estante
de sua já reduzida biblioteca para,
lá do alto, e qual Cleópatra ou impenetrável esfinge, em faraônica e
professoral vigília, parece guardar 40 séculos de História e sabedoria. Por
incrível e curiosa coincidência, e sem depreciar os nomes de nenhuma das duas,
ambas atendem por “Vivi”.
...Uma intrometida e deslocada
churrasqueira no jardim, prendem meu amigo por mais algum tempo na sua
aldeia, junto ao borralho de uma lareira
- iluminada por bruxuleante candeia - para aquecer a sua alma, enquanto a neve,
leve e silenciosamente cai lá fora, em brancos flocos de algodão. Desde o
campanário da pequena igreja despencam os sons das badaladas de um sino
imemorial, desde quando ele ainda não era Pessoa, e o Fernando já
havia deixado de sê-lo, e feito versos sobre ele, sino. Como contraponto, seu
pensamento o traz de volta aos trópicos, a lembrar-lhe a sua adolescência
enfarinhada nas noites mal dormidas sobre os tabuleiros do pão da madrugada,
junto aos fornos de várias padarias. Os
rostos dos companheiros de jardim, indefinidos ou identificáveis por suas
origens diversas neste país multifacetário, o empurram de volta às muitas
viagens – breves ou longas - que fez por muitos países do mundo, a fazer dele
um ser cosmopolita. Mas, entre eles, na rapidez e no brilho de um raio de luz,
vê o rosto pleno de luso-nipo-brasilidade do seu Júlio Gabriel, filho e
a maior e mais precoce entre as várias perdas desnecessárias do meu
amigo, a contrariar Judith Viorst em
“Perdas Necessárias”.
A psicóloga,
à porta e do alto dos degraus da conexão sala/jardim, qual guia de excursão,
chama de volta os jardineiros, que plantavam e colhiam pensamentos, para a sala
de exercícios. Os 5 minutos de recreio – inferiores ao tempo de leitura desta
crônica - já se haviam esgotado e
pareceram demasiado curtos para tanto pensar. Todos voltam lentamente, agora
com imagens mais claras e menos difusas, como se retornassem de um sonho ou
regressão hipnótica. Retomam sua aula de equilíbrio psico-físico de corpo, alma
e mente geriátricos que, no Trasmontano, são totalmente descoordenados. Os
entreolhares já são menos disfarçados e temerosos; os sorrisos mais abertos e
descontraídos. Alguns até se atrevem a contar o que sentiram na sua experiência
meditativa; as guardas são baixadas; o degelo é gradativo; e ao meu amigo parece-lhe que até já paira um
certo clima de sociabilidade latente no ar. Quem sabe, na próxima? Como
ensinamento mínimo, os curtos 5 minutos de meditação trouxeram uma certeza a
todos: a de como a contemplação de cada detalhe da natureza pode levar ao
universo interno e externo de cada um, e de que a infinitude da mente humana,
não importa em que idade, pode e deve ir ...muito além do jardim.
JCN –
OUT - 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário! É sempre muito bem vindo.
Nicanor de Freitas Filho