terça-feira, 12 de novembro de 2013

Crônica 13 - MUITO ALÉM DO JARDIM

                                                José Carlos Neves
                                                 A meditação é a árvore dos ramos do pensamento;
                                            À sua sombra viajamos através da vida e do firmamento.  (JCN)
                                                                                                                                                 
        O meu amigo Trasmontano calça o sapatenis, desce um lance de 3 ou 4 degraus, e alcança o jardim. Em silêncio, sente os pés a pressionar o piso de cimento e observa os contornos dos estreitos caminhos, reservados à circulação dos caminhantes, e ladeados por canteiros e floridas árvores. Com os olhos semicerrados, intui, mais que vê, vários outros vultos que, como ele, andam para cá e para lá em indefinidas direções e passos, como se em catártico e coletivo transe buscassem algo desconhecido. O meu amigo, numa suave passagem do plano real ao puramente meditativo, de repente encontra-se num ambiente socrático, na acrópole de Atenas,  como humilde e maiêutico discípulo a aprender ou inquirir de Sócrates sobre os mistérios da sabedoria do homem sobre si mesmo e o universo. Uns segundos mais e outros vultos passam por ele – talvez para aproveitar o mesmo cenário – os quais, por seu luto e melenas, neles reconhece serem as mulheres do Chico e de Atenas.

        Minutos antes, a psicóloga, monitora das atividades, pedira a todos que saíssem para o jardim, acessível  pelo fundo da sala, para que sentissem o que poderia ser uma nova experiência para a maioria: um convite à meditação, em contato com a natureza e seus sons, e à auscultação do seu próprio silêncio. Era o segundo exercício do meu amigo sobre meditação, e mais uma de  um rol de atividades oferecidos pela PreventSenior, com o objetivo de prevenir enfermidades físicas ou psíquicas, tão próprias da idade da maioria dos seus conveniados. Ele teria preferido outra atividade, como literatura, coral ou teatro, ainda indisponíveis, por isso fora levado quase à força pela sua mulher, esta sim mais habituada a esses exercícios por sua natureza oriental. Como em todos os grupos de que o meu amigo participa, voltados para a terceira idade, também neste predominam as mulheres com maioria avassaladora. Ele entende que a maior parte dos homens, por vergonha ou pelo tonto preconceito  de  julgarem sua masculinidade ofendida, se sentem constrangidos e demasiado jovens ou velhos para participarem de atividades que julgam ser de mulheres. E assim se auto condenam ao isolamento, ou à morte precoce, e a deixar às suas bravas esposas ou viúvas a responsabilidade e a sapiência de substituí-los, e autopreservar-se por quanto tempo a vida ainda lhes possa ser prolongada. Talvez já menos exigidas por maridos, filhos e obrigações profissionais, finalmente, e com mérito, encontram tempo para si mesmas.

      ...Dados alguns passos mais, uma rosa, que ele vê transformar-se na Roselândia, onde quase 50 anos antes havia pedido a Eiko, a sua amada flor oriental, em namoro. E ela própria, que o acompanha nesta curta caminhada – a da vida é bem mais longa – pára para observar uma árvore florida, que o meu amigo pronto transforma num imenso jardim de cerejeiras em flor. Dois passos mais, e um girassol, já ligeiramente murcho, de repente se traslada a um iluminado campo de coloridos, frescos e bem vivos girassóis, como numa tela de Van Gogh, ou num filme de Kurosawa. Avançando um pouco mais pelo jardim, os vultos das muitas mulheres a passear pelas curtas e estreitas alamedas, e que em alternantes e intermitentes sensações, lhe parecem, por vezes ninfas flutuantes sobre tranquilos lagos; bacantes à procura de seus bem amados na penumbra das tavernas; valquírias cavalgantes em busca de meritosos guerreiros ao prêmio do valhala; intrépidas cruzadas a vagar pelas brumas de Avalon em defesa do Rei Arthur. Chega a ouvir o som longínquo e suave de alguns acordes da medieval Greensleves, e cantarola algumas notas a boca chiusa. Agora, 2 ou 3 frondosas árvores o transportam para os bosques de Viena, onde bailará uma valsa de Strauss, ou se  deslumbrará com uma ópera de Mozart. Um pouco mais, e um estranho sistema de vasos comunicantes, montado por taquaras secas numa das paredes, o levam até às noras de Sampaio, sua aldeia trasmontana, a regar as hortas e a vida da sua infância.

        Logo à entrada, os participantes são convidados a tirar os sapatos e pisar descalços sobre um tatame quadrado ladeado por cadeiras nos seus 4 lados. A psicóloga, uma jovem adulta de idade não revelada, mas suficiente para liderar e comandar idades que, somadas, ultrapassam 1000 anos. A sua postura corporal e cênica, altiva, de movimentos suaves, teatrais, olhar profundo e penetrante, voz alternadamente modulada em distintos decibéis, transmitem credibilidade e carisma a todos os participantes. Ela sabe que tem a difícil tarefa de fazer com  que todos deixem fora da sala a compreensível inibição daqueles que se encontram frente a frente pela primeira vez, e com quem irão interagir durante várias sessões e, quem sabe, ter que expor prazenteiras ou dolorosas confidências. Desde a primeira aula, ela lembra ao meu amigo a sua gata persa, tricolor atartarugada que, com seu caminhar senhorial de uma old lady, mas  que com felina agilidade, escala até a última estante  de sua já reduzida biblioteca para,  lá do alto, e qual Cleópatra ou impenetrável esfinge, em faraônica e professoral vigília, parece guardar 40 séculos de História e sabedoria. Por incrível e curiosa coincidência, e sem depreciar os nomes de nenhuma das duas, ambas atendem por “Vivi”. 

      ...Uma intrometida e deslocada churrasqueira no jardim, prendem meu amigo por mais algum tempo na sua aldeia,  junto ao borralho de uma lareira - iluminada por bruxuleante candeia - para aquecer a sua alma, enquanto a neve, leve e silenciosamente cai lá fora, em brancos flocos de algodão. Desde o campanário da pequena igreja despencam os sons das badaladas de um sino imemorial, desde quando ele ainda não era Pessoa, e o Fernando já havia deixado de sê-lo, e feito versos sobre ele, sino. Como contraponto, seu pensamento o traz de volta aos trópicos, a lembrar-lhe a sua adolescência enfarinhada nas noites mal dormidas sobre os tabuleiros do pão da madrugada, junto aos fornos de  várias padarias. Os rostos dos companheiros de jardim, indefinidos ou identificáveis por suas origens diversas neste país multifacetário, o empurram de volta às muitas viagens – breves ou longas - que fez por muitos países do mundo, a fazer dele um ser cosmopolita. Mas, entre eles, na rapidez e no brilho de um raio de luz, vê o rosto pleno de luso-nipo-brasilidade do seu Júlio Gabriel, filho e a maior e mais precoce entre as várias perdas desnecessárias do meu amigo, a contrariar Judith Viorst em  “Perdas Necessárias”.

       A psicóloga, à porta e do alto dos degraus da conexão sala/jardim, qual guia de excursão, chama de volta os jardineiros, que plantavam e colhiam pensamentos, para a sala de exercícios. Os 5 minutos de recreio – inferiores ao tempo de leitura desta crônica -  já se haviam esgotado e pareceram demasiado curtos para tanto pensar. Todos voltam lentamente, agora com imagens mais claras e menos difusas, como se retornassem de um sonho ou regressão hipnótica. Retomam sua aula de equilíbrio psico-físico de corpo, alma e mente geriátricos que, no Trasmontano, são totalmente descoordenados. Os entreolhares já são menos disfarçados e temerosos; os sorrisos mais abertos e descontraídos. Alguns até se atrevem a contar o que sentiram na sua experiência meditativa; as guardas são baixadas; o degelo é gradativo;  e ao meu amigo parece-lhe que até já paira um certo clima de sociabilidade latente no ar. Quem sabe, na próxima? Como ensinamento mínimo, os curtos 5 minutos de meditação trouxeram uma certeza a todos: a de como a contemplação de cada detalhe da natureza pode levar ao universo interno e externo de cada um, e de que a infinitude da mente humana, não importa em que idade, pode e deve ir ...muito além do jardim.


JCN – OUT - 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário! É sempre muito bem vindo.
Nicanor de Freitas Filho