quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Causo 85 - O Paletó do Alípio - J. Gamaliel A. Ramos


                                                                        José Gamaliel Anchieta Ramos
           Na vida dele, tudo mudou para melhor. Antes dos bons tempos, eu o atendia amiúde no escritório local do serviço de extensão rural. Com o atropelo dos afazeres, quando percebi, já estávamos afastados.
           Pouco a pouco, o pequeno agricultor Alípio Teixeira expandiu os seus negócios, produzindo não só para o próprio sustento. As áreas com hortaliças aumentaram conforme comprava mais terras.
            Fazia viagens à Central de Abastecimento, de duas a quatro por semana, para entregar os produtos das propriedades, com produções aperfeiçoadas a cada safra. 
            No tempo do frio, o produtor e sua família se aqueciam com o mesmo paletó, um a um. Em qualquer ocasião ou lugar, nas festas, no escritório, na escola ou nas ruas, era o agasalho do grande e do pequeno, fosse homem ou mulher.
            Cor de cinza, não era feito de tecido grosseiro. Também não chegava a ser uma peça de alta qualidade. Como não se importavam tanto com o modo de vestir, eles nunca deixaram de trajar o surrado casaco de tergal xadrezinho. 
          Certo dia, um fato enigmático ocorreu. Era noite quando acabei de visitar umas fazendas. Na volta, depois de uma curva da estrada deserta, encostado à direita, vi o caminhão do Alípio, abandonado.
            Nas proximidades da roda traseira estava o dono do veículo, caído, imóvel. De longe, tinha ares de morto.
            De perto, quando me ajoelhei ao seu lado, percebi que nada dele se movia porque realmente estava morto. Ele não podia me contar o que queria saber. Eu não entendia nada. Para mim, o ocorrido não fazia sentido.  Parecia um crime. Que mistério seria aquele? Quem teria feito aquilo? 
            Eu não estava confuso quanto a um detalhe. Não houvera luta. A profunda marca de ferimento na cabeça, pouco acima da nuca, indicava que tinha recebido um traiçoeiro golpe, desferido pela barra de ferro que encontrei ao lado do corpo, junto ao pneu.                                                                       
            Não era hora de pensar muito. Entendi que deveria agir com rapidez. Quis carregar o cadáver, mas avancei apenas alguns passos. Então, passei a arrastá-lo, medida que também exigia bastante esforço.
            Finalmente, acertei quando decidi encostar o carro ao lado do corpo. Mesmo que ele não pudesse ouvir, pedi desculpas pela falta de jeito, enquanto o empurrava para o banco traseiro.
            Em seguida, fechei as portas e parti em direção à cidade. Entreguei o defunto ao delegado. Uma, duas, outras, outras mais, uma dúzia de perguntas foram feitas.
            Fiquei de olhos esbugalhados ao ter de passar por um interrogatório. Não satisfeito com as respostas, o homem marcou depoimento para as 10 horas do dia seguinte.
            Pois é, a autoridade não acreditara na minha boa intenção. Saí de lá na condição de suspeito.
            Naquela noite, não alcancei o descanso. Acontece que, desperto, pude sentir o tamanho da idiotice que fizera. Ouvia bêbados, cães, galos, motores, o caminhão recolhedor de lixo, a festa ao lado, a máquina do relógio de parede, a descarga do banheiro vizinho. Ouvia, ouvia, pensava, pensava.
            Uma insegurança trouxe à mente idéias que me deixaram todo cismado.
            Estava sobrecarregado e, cada vez mais perdido naquela situação. Não vinha à lembrança nenhuma outra circunstância desesperadora ou incontrolável que pudesse ter vivido.
            Imaginei quanta culpa, quanto sofrimento, quanta contrariedade teria poupado com uma simples omissão. Mas não quis deixar o Alípio abandonado, ao relento.  Por toda noite remoí pensamentos, sem encontrar solução para o problema. Eu estava encrencado, na verdade tinha cometido uma grande loucura.       
           Pela manhã, cheguei ao local de trabalho, aberto pela secretaria. Estava para começar um dia fatigante. Iria atender um produtor ou outro. Após minha ida à delegacia, se corresse tudo bem, viajaria a capital a fim de participar de uma reunião no escritório central da empresa.
           Nem tinha levado à boca a xícara fumegante de café que a secretária havia colocado sobre a mesa quando, de repente, a porta se abriu e entrou na sala um jovem.
           Quem seria e o que desejava tão cedo?
           Ninguém jamais o vira em nossa pequena cidade. A estampa do moço mostrava algo que eu conseguia ver, claramente. Talvez estivesse diante de mim alguém pronto a me tirar daquele apuro. Mesmo tendo a mente invadida por pensamentos, resolvi dar carona ao desconhecido, que estava ali para pedir isso.
           Antes de viajar, fui à outra sala, tranquei a porta e dei um rápido telefonema. Depois, convidei o moço a entrar comigo no carro.
           Saí pelas estreitas ruas, subindo e descendo ladeiras, deixando para trás alguns quarteirões. Em frente à delegacia havia uma batida policial. Viaturas no local, vários militares armados, de pé, um deles mandou que eu parasse.
           De modo inesperado, cercaram e invadiram o carro, arrastando o passageiro com sua bagagem. Ele seguiu escoltado para o interior da repartição.
           Mais calmo agora, fiquei observando o que acontecia.
           Meia hora depois, o delegado confirmou que o moço acabara de contar como tudo havia acontecido.
            Ele e Alípio se conheceram na Central de Abastecimento. Vieram de Goiânia na tarde do dia anterior, pois Alípio o aceitara como empregado.
            No momento em que o novo patrão trocava o pneu, o rapaz o atingiu por trás com a barra de ferro. O ataque foi ao anoitecer, para roubar dinheiro e cheques. Por causa do frio, o ladrão resolveu apanhar também o paletó da vítima. Do local até a cidade, seguiu a pé.
            Como a rodoviária estava cheia de policiais, não teve coragem de fugir em algum ônibus.  No Boteco do Benzinho, foi informado que talvez conseguisse viajar de favor com o técnico do escritório da Emater. Preferiu esperar pelo dia seguinte.      
            Não fosse o inconfundível paletó, dificilmente teríamos descoberto o assassino de Alípio. Quando liguei do escritório, eu disse ao delegado:
           —  Delegado, não preciso mais depor.
           —  Por quê?
           —  Porque o assassino do Alípio está aqui, no meu escritório.
           —  Por que você tem tanta certeza? Ele disse que matou o homem?
          —  Não, mas ele chegou vestido com o paletó do Alípio.  
          —  Verdade? Você pode vir com ele à delegacia, agora?
          —  Posso. Espere, já levo o moço para o senhor conversar com ele!
          —  Positivo! 

12 comentários:

  1. Freitas
    Frases curtas de fácil e fluída leitura. Vocabulário sem mineirismos, o que talvez deixe o "causo" demasiado sério. O final foi um pouco prejudicado pela antecipação do desfecho do clima de suspense que vinha sendo bem construído. De qualquer forma, não perca esse "causeiro", pois tem um grande potencial.
    Abraços. J. Carlos - 20/11/13

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    1. Zé Carlos, já tenho cobrado dele outros causos, mas acho que ele anda sem tempo, pois não me manda nada.

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  2. Nicanor, como vai?
    Todos seus causos são muito interessantes.
    Continue nos mantendo com seus textos.
    Abraços, Susana.

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    1. Suzana, muito obrigado pelo interesse. Você é amiga de fato! Pode deixar que à medida do possível vou escrevendo ou recebendo colaborações dos amigos...

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  3. Eu achei o causo interessante, inteligente, criativo!!! O desfecho no final foi surpreendente e gostei do suspense também! Lendo o causo sofri com as angústias e incertezas do amigo que apenas quis ajudar o Alípio tendo a coragem de levar o corpo do defunto até o delegado!!!!!

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    1. Muito obrigado pelo comentário!
      Por favor, assine seus comentários, para eu poder dirigir uma resposta pessoal.
      Abraços
      Nicanor

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  4. Senti uma certa apreensão diante da ingenuidade e boa intenção do amigo ao ver o Alípio caído inerte perto do seu caminhão.Gostei do causo. Achei-o interessante, criativo e inteligente. Malu Silva

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    1. Malu, um causo que poderia ser assinado por Edgar A. Poe, concorda?
      Obrigado pelo comentário!

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  5. Muito bom! Vivi o sofrimento, o suspense. Acabei me identificando com a "ingenuidade" ou "impulsividade" da personagem. Tereza Silva

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    1. Tereza, creio que a melhor coisa para o escritor e saber que alguém "viveu" o conto dele. Muito obrigado pelo comentário.

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  6. Perfeito! O autor conseguiu transmitir ao leitor, com clareza e criatividade, toda a sua aflição e receios que passou por ter praticado uma boa ação; ao ponto de quem lê o causo ter a impressão que estava ali, com ele, vivenciando toda aquela situação. Gostei muito do suspense criado e fiquei surpresa com o arremate do final.
    Parabéns ao autor!.
    Maria de Fátima Lucas

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    1. Fátima, muito obrigado pelo comentário! Os causos só são bons se o final traz algo inesperado, não é?

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Obrigado pelo seu comentário! É sempre muito bem vindo.
Nicanor de Freitas Filho