José Gamaliel
Anchieta Ramos
Na vida dele, tudo mudou para
melhor. Antes dos bons tempos, eu o atendia amiúde no escritório local do
serviço de extensão rural. Com o atropelo dos afazeres, quando percebi, já
estávamos afastados.
Pouco a pouco, o pequeno agricultor
Alípio Teixeira expandiu os seus negócios, produzindo não só para o próprio
sustento. As áreas com hortaliças aumentaram conforme comprava mais terras.
Fazia viagens à Central de
Abastecimento, de duas a quatro por semana, para entregar os produtos das
propriedades, com produções aperfeiçoadas a cada safra.
No tempo do frio, o produtor e sua
família se aqueciam com o mesmo paletó, um a um. Em qualquer ocasião ou lugar,
nas festas, no escritório, na escola ou nas ruas, era o agasalho do grande e do
pequeno, fosse homem ou mulher.
Cor de cinza, não era feito de
tecido grosseiro. Também não chegava a ser uma peça de alta qualidade. Como não
se importavam tanto com o modo de vestir, eles nunca deixaram de trajar o surrado
casaco de tergal xadrezinho.
Certo dia, um fato enigmático
ocorreu. Era noite quando acabei de visitar umas fazendas. Na volta, depois de
uma curva da estrada deserta, encostado à direita, vi o caminhão do Alípio,
abandonado.
Nas proximidades da roda traseira
estava o dono do veículo, caído, imóvel. De longe, tinha ares de morto.
De perto, quando me ajoelhei ao seu
lado, percebi que nada dele se movia porque realmente estava morto. Ele não
podia me contar o que queria saber. Eu não entendia nada. Para mim, o ocorrido
não fazia sentido. Parecia um crime. Que
mistério seria aquele? Quem teria feito aquilo?
Eu não estava confuso quanto a um
detalhe. Não houvera luta. A profunda marca de ferimento na cabeça, pouco acima
da nuca, indicava que tinha recebido um traiçoeiro golpe, desferido pela barra
de ferro que encontrei ao lado do corpo, junto ao pneu.
Não era hora de pensar muito.
Entendi que deveria agir com rapidez. Quis carregar o cadáver, mas avancei
apenas alguns passos. Então, passei a arrastá-lo, medida que também exigia
bastante esforço.
Finalmente, acertei quando decidi
encostar o carro ao lado do corpo. Mesmo que ele não pudesse ouvir, pedi
desculpas pela falta de jeito, enquanto o empurrava para o banco traseiro.
Em seguida, fechei as portas e
parti em direção à cidade. Entreguei o defunto ao delegado. Uma, duas, outras,
outras mais, uma dúzia de perguntas foram feitas.
Fiquei de olhos esbugalhados ao ter
de passar por um interrogatório. Não satisfeito com as respostas, o homem
marcou depoimento para as 10 horas do dia seguinte.
Pois é, a autoridade não acreditara
na minha boa intenção. Saí de lá na condição de suspeito.
Naquela noite, não alcancei o
descanso. Acontece que, desperto, pude sentir o tamanho da idiotice que fizera.
Ouvia bêbados, cães, galos, motores, o caminhão recolhedor de lixo, a festa ao
lado, a máquina do relógio de parede, a descarga do banheiro vizinho. Ouvia,
ouvia, pensava, pensava.
Uma insegurança trouxe à mente
idéias que me deixaram todo cismado.
Estava sobrecarregado e, cada vez
mais perdido naquela situação. Não vinha à lembrança nenhuma outra
circunstância desesperadora ou incontrolável que pudesse ter vivido.
Imaginei quanta culpa, quanto
sofrimento, quanta contrariedade teria poupado com uma simples omissão. Mas não
quis deixar o Alípio abandonado, ao relento.
Por toda noite remoí pensamentos, sem encontrar solução para o problema.
Eu estava encrencado, na verdade tinha cometido uma grande loucura.
Pela manhã, cheguei ao local de
trabalho, aberto pela secretaria. Estava para começar um dia fatigante. Iria
atender um produtor ou outro. Após minha ida à delegacia, se corresse tudo bem,
viajaria a capital a fim de participar de uma reunião no escritório central da
empresa.
Nem tinha levado à boca a xícara fumegante
de café que a secretária havia colocado sobre a mesa quando, de repente, a
porta se abriu e entrou na sala um jovem.
Quem seria e o que desejava tão
cedo?
Ninguém jamais o vira em nossa
pequena cidade. A estampa do moço mostrava algo que eu conseguia ver,
claramente. Talvez estivesse diante de mim alguém pronto a me tirar daquele
apuro. Mesmo tendo a mente invadida por pensamentos, resolvi dar carona ao
desconhecido, que estava ali para pedir isso.
Antes de viajar, fui à outra sala,
tranquei a porta e dei um rápido telefonema. Depois, convidei o moço a entrar
comigo no carro.
Saí pelas estreitas ruas, subindo e
descendo ladeiras, deixando para trás alguns quarteirões. Em frente à delegacia
havia uma batida policial. Viaturas no local, vários militares armados, de pé,
um deles mandou que eu parasse.
De modo inesperado, cercaram e
invadiram o carro, arrastando o passageiro com sua bagagem. Ele seguiu
escoltado para o interior da repartição.
Mais calmo agora, fiquei observando o
que acontecia.
Meia hora depois, o delegado
confirmou que o moço acabara de contar como tudo havia acontecido.
Ele e Alípio se conheceram na
Central de Abastecimento. Vieram de Goiânia na tarde do dia anterior, pois
Alípio o aceitara como empregado.
No momento em que o novo patrão
trocava o pneu, o rapaz o atingiu por trás com a barra de ferro. O ataque foi
ao anoitecer, para roubar dinheiro e cheques. Por causa do frio, o ladrão
resolveu apanhar também o paletó da vítima. Do local até a cidade, seguiu a pé.
Como a rodoviária estava cheia de
policiais, não teve coragem de fugir em algum ônibus. No Boteco do Benzinho, foi informado que
talvez conseguisse viajar de favor com o técnico do escritório da Emater.
Preferiu esperar pelo dia seguinte.
Não fosse o inconfundível paletó,
dificilmente teríamos descoberto o assassino de Alípio. Quando liguei do
escritório, eu disse ao delegado:
— Delegado, não preciso mais depor.
— Por quê?
— Porque o assassino do Alípio está aqui, no
meu escritório.
— Por que você tem tanta certeza? Ele disse que
matou o homem?
— Não, mas ele chegou vestido com o paletó do
Alípio.
— Verdade? Você pode vir com ele à delegacia,
agora?
— Posso. Espere, já levo o moço para o senhor
conversar com ele!
—
Positivo!
Freitas
ResponderExcluirFrases curtas de fácil e fluída leitura. Vocabulário sem mineirismos, o que talvez deixe o "causo" demasiado sério. O final foi um pouco prejudicado pela antecipação do desfecho do clima de suspense que vinha sendo bem construído. De qualquer forma, não perca esse "causeiro", pois tem um grande potencial.
Abraços. J. Carlos - 20/11/13
Zé Carlos, já tenho cobrado dele outros causos, mas acho que ele anda sem tempo, pois não me manda nada.
ExcluirNicanor, como vai?
ResponderExcluirTodos seus causos são muito interessantes.
Continue nos mantendo com seus textos.
Abraços, Susana.
Suzana, muito obrigado pelo interesse. Você é amiga de fato! Pode deixar que à medida do possível vou escrevendo ou recebendo colaborações dos amigos...
ExcluirEu achei o causo interessante, inteligente, criativo!!! O desfecho no final foi surpreendente e gostei do suspense também! Lendo o causo sofri com as angústias e incertezas do amigo que apenas quis ajudar o Alípio tendo a coragem de levar o corpo do defunto até o delegado!!!!!
ResponderExcluirMuito obrigado pelo comentário!
ExcluirPor favor, assine seus comentários, para eu poder dirigir uma resposta pessoal.
Abraços
Nicanor
Senti uma certa apreensão diante da ingenuidade e boa intenção do amigo ao ver o Alípio caído inerte perto do seu caminhão.Gostei do causo. Achei-o interessante, criativo e inteligente. Malu Silva
ResponderExcluirMalu, um causo que poderia ser assinado por Edgar A. Poe, concorda?
ExcluirObrigado pelo comentário!
Muito bom! Vivi o sofrimento, o suspense. Acabei me identificando com a "ingenuidade" ou "impulsividade" da personagem. Tereza Silva
ResponderExcluirTereza, creio que a melhor coisa para o escritor e saber que alguém "viveu" o conto dele. Muito obrigado pelo comentário.
ExcluirPerfeito! O autor conseguiu transmitir ao leitor, com clareza e criatividade, toda a sua aflição e receios que passou por ter praticado uma boa ação; ao ponto de quem lê o causo ter a impressão que estava ali, com ele, vivenciando toda aquela situação. Gostei muito do suspense criado e fiquei surpresa com o arremate do final.
ResponderExcluirParabéns ao autor!.
Maria de Fátima Lucas
Fátima, muito obrigado pelo comentário! Os causos só são bons se o final traz algo inesperado, não é?
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