José Carlos Neves
Evento que incentiva as artes do
antigo e do novo;
Livre expressão das tradições e cultura de um
povo. (JCN)
O meu
amigo Trasmontano estica um pouco a cabeça para a frente, faz um
anteparo com a mão no ouvido, em forma de concha, e acaba num inútil esforço
para entender o poema que uma poetisa saída da plateia tenta transmitir a um
público atento. Por causa da sua avançada deficiência auditiva, ele não
consegue ouvir muito do que expressam os versos, mas devem ter sido do agrado
de todos, pois são recebidos por calorosos aplausos, esses sim, audíveis. Logo
após, uma atração masculina é chamada ao palco e, à capela, entoa uma
desconhecida canção que parece vir de algum rincão gaúcho. Ninguém lhe faz
coro, mas todos o aplaudem, e feliz volta ao seu lugar entre os assistentes.
Depois é a vez de um cronista em prosa e verso, a prosear e versejar sobre suas
muitas andanças e lembranças por esta megalópole paulista. Um entusiasmado
mestre de cerimônias vai anunciando as humildes mas orgulhosas atrações, que
vão sucedendo uma à outra, a mostrar a capacidade criativa de cada uma, como a
servir de aquecimento para apresentações mais tardias e pretensamente mais
nobres.
Num breve intermezzo, o
meu amigo rebobina a memória sobre o que o teria levado até à Subprefeitura do Tucuruvi, e a deslocar-se
desde o Sul ao Norte da cidade, para ser participante passivo e ativo daquele
sarau. Aposentado, entre as várias atividades da sua nova condição de idoso,
ele decidiu juntar-se a um coral, -
incentivado pela Ultrafarma - formado por homens e mulheres que, como ele,
buscavam ocupar seu tempo com algo que lhes proporcionasse qualidade de vida,
prazer e, ao mesmo tempo, pudessem comparti-los com outras pessoas. Nada melhor
e mais democrático que o canto! Ele é o mais recente, mas não mais novo,
integrante do grupo, cuja média de idade deve andar aí pelos ...enta. Como
em todos os grupos nessa faixa etária, a quantidade de mulheres é de uma
maioria assustadora. Neste, em torno de 25 pessoas, apenas 4 destemidos e
heróicos homens se atrevem a participar desse exército vocal – de pouca técnica
e muita alma – sob o comando da maestrina Doroty, uma dama-guerreira
indomável – apesar da idade e aparente fragilidade física - secundada por Élcio,
maestro e paciente tecladista, a dosar e modular os arroubos vocais e
gestuais da mestra.
As apresentações recomeçam
no palco, agora com uma senhora, saída não se sabe de onde, e cujos trajes
revelam dias difíceis, a contar piadas, como num stand up show, e a tentar, talvez, colocar um
pouco de humor e felicidade na sua vida, e na daqueles que a aplaudem neste
momento.É então a vez de mais um cavalheiro que vem para cantar e contar que “As Rosas não Falam”, e
seria uma bela interpretação não fosse o chiado estridente do seu play back.
Mas logo uma roda de senhoras, de muitos ...entas de idade, ocupa um
espaço abaixo do palco para uma demonstração de dança circular, na qual rodam
graciosamente seus passos de dança e, a
girar e girar, fazem do círculo a sua “roda viva”, como possivelmente
terão sido suas vidas: uma roda ainda mais viva. Um cantautor,
com seu violão, as sucede com 3 canções de sua autoria. O bloco é fechado com
outra senhora, com alguns quilos demais e a prever-se, por eles, alguma vida de
menos, que se inscrevera só para dizer como “estava feliz de estar ali, e como
a Primavera era linda”. Aplausos para todos, alguns calorosos, outros
caridosos.
E em mais um intermezzo, o
amigo Trasmontano volta a pensar no seu grupo.
Sente-se um pouco envergonhado porque ainda não conhece quase ninguém
pelo seu nome, excepto da maestrina e maestro, e dos demais dois homens, por
sua minoria. A onomástica ainda não alcançou o estágio de permitir que, pelo
nome, se reconheça a anatomia facial equivalente, neste país tão
multifacetário. Tímido, ainda não se apresentou a todo o grupo, nem procurou
saber quem era quem, como também não se atreveu a revelar a sua preferência
cancioneira. A sua sensibilidade musical é puramente intuitiva; ele não
consegue identificar nenhuma nota dos do, re, mi, fa..., e por vezes até
confunde partitura com pauta, mas está seguro da sua inclinação
pela boa música, aquela que lhe penetra o corpo e a alma, sem se
importar se é erudita ou popular. A sua memória musical é antiga, quase toda
anterior a 1980. Por muito que tente, não consegue memorizar as músicas mais
contemporâneas. Nem sempre concorda com o repertório do coral, que poderia ser
mais universal, como deve ser a música, mas o respeita, e ainda não se atreveu
a pedir a inserção de algumas de suas
canções prediletas.
Oops! Estão a chamar para a
apresentação do seu grupo. Então, lá vai o meu amigo, com um certo frio na
barriga, mas disposto a dar humilde contribuição vocal ao ambiente, junto com
demais companheiras e companheiros, e com eles sentir-se próximo do belo – como é próprio da boa
música -, e transmitir essa mesma sensação a todos os presentes. Meia dúzia de
razoáveis interpretações depois, os aplausos soaram calorosos, não se sabe se
pelo real prazer sentido, ou se pelo incentivo a continuar. Para encerrar,
outro grupo vocal, formado só por mulheres – sempre elas –, exceto o maestro,
se apresenta com 3 belas canções nacionais. Os aplausos são praticamente de
igual intensidade, a indicar equânime agrado. Afinal, não era uma competição
musical, mas sim a necessidade de cantores e ouvintes se sentirem mais vivos e
mais úteis nessa catártica interação de prazer e entrega.
É hora de tomar o metrô de
volta para a Zona Sul e, no seu assento de idoso, o meu amigo repassa
mentalmente o evento com aquelas cerca
de 150 pessoas que, ativa ou passivamente,
participaram do sarau. Lembra da música “Mulher Brasileira”,
magnificamente interpretada pelo outro coral, e da avassaladora maioria de
mulheres, idosas, ou próximas de sê-lo,
como ele. Como as do seu grupo, bravas mulheres! que não se intimidam com
a idade, e nem com o tonto constrangimento masculino de participarem de ações
que, além de lhes trazerem e doar prazer, com certeza lhes deixarão um razoável
bônus de longevidade. Em outra atividade, ele recentemente protagonizou uma
crônica sobre meditação, além de muitas outras já escritas e a escrever. Como
na literatura, o meu amigo pode ter descoberto tardiamente sua vocação musical,
mas com certeza ainda lhe restará tempo
para que possa fazer do saldo da sua vida um longo sarau lítero-musical.
JCN – NOV - 2013
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Nicanor de Freitas Filho