sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Crônica 14 - Sarau

                           José Carlos Neves
                                   Evento que incentiva as  artes do antigo e do novo;
                                   Livre expressão das tradições e cultura de um povo.  (JCN)

         O meu amigo Trasmontano estica um pouco a cabeça para a frente, faz um anteparo com a mão no ouvido, em forma de concha, e acaba num inútil esforço para entender o poema que uma poetisa saída da plateia tenta transmitir a um público atento. Por causa da sua avançada deficiência auditiva, ele não consegue ouvir muito do que expressam os versos, mas devem ter sido do agrado de todos, pois são recebidos por calorosos aplausos, esses sim, audíveis. Logo após, uma atração masculina é chamada ao palco e, à capela, entoa uma desconhecida canção que parece vir de algum rincão gaúcho. Ninguém lhe faz coro, mas todos o aplaudem, e feliz volta ao seu lugar entre os assistentes. Depois é a vez de um cronista em prosa e verso, a prosear e versejar sobre suas muitas andanças e lembranças por esta megalópole paulista. Um entusiasmado mestre de cerimônias vai anunciando as humildes mas orgulhosas atrações, que vão sucedendo uma à outra, a mostrar a capacidade criativa de cada uma, como a servir de aquecimento para apresentações mais tardias e pretensamente mais nobres.

        Num breve intermezzo, o meu amigo rebobina a memória sobre o que o teria levado até  à Subprefeitura do Tucuruvi, e a deslocar-se desde o Sul ao Norte da cidade, para ser participante passivo e ativo daquele sarau. Aposentado, entre as várias atividades da sua nova condição de idoso, ele decidiu juntar-se a um coral,  - incentivado pela Ultrafarma - formado por homens e mulheres que, como ele, buscavam ocupar seu tempo com algo que lhes proporcionasse qualidade de vida, prazer e, ao mesmo tempo, pudessem comparti-los com outras pessoas. Nada melhor e mais democrático que o canto! Ele é o mais recente, mas não mais novo, integrante do grupo, cuja média de idade deve andar aí pelos ...enta. Como em todos os grupos nessa faixa etária, a quantidade de mulheres é de uma maioria assustadora. Neste, em torno de 25 pessoas, apenas 4 destemidos e heróicos homens se atrevem a participar desse exército vocal – de pouca técnica e muita alma – sob o comando da maestrina Doroty, uma dama-guerreira indomável – apesar da idade e aparente fragilidade física - secundada por Élcio, maestro e paciente tecladista, a dosar e modular os arroubos vocais e gestuais da mestra.

        As apresentações recomeçam no palco, agora com uma senhora, saída não se sabe de onde, e cujos trajes revelam dias difíceis, a contar piadas, como num  stand up show, e a tentar, talvez, colocar um pouco de humor e felicidade na sua vida, e na daqueles que a aplaudem neste momento.É então a vez de mais um cavalheiro que vem para  cantar e contar que “As Rosas não Falam”, e seria uma bela interpretação não fosse o chiado estridente do seu play back. Mas logo uma roda de senhoras, de muitos ...entas de idade, ocupa um espaço abaixo do palco para uma demonstração de dança circular, na qual rodam graciosamente  seus passos de dança e, a girar e girar, fazem do círculo a sua “roda viva”, como possivelmente terão sido suas vidas: uma roda ainda mais viva. Um cantautor, com seu violão, as sucede com 3 canções de sua autoria. O bloco é fechado com outra senhora, com alguns quilos demais e a prever-se, por eles, alguma vida de menos, que se inscrevera só para dizer como “estava feliz de estar ali, e como a Primavera era linda”. Aplausos para todos, alguns calorosos, outros caridosos.

        E em mais um intermezzo, o amigo Trasmontano volta a pensar no seu grupo.
Sente-se um pouco envergonhado porque ainda não conhece quase ninguém pelo seu nome, excepto da maestrina e maestro, e dos demais dois homens, por sua minoria. A onomástica ainda não alcançou o estágio de permitir que, pelo nome, se reconheça a anatomia facial equivalente, neste país tão multifacetário. Tímido, ainda não se apresentou a todo o grupo, nem procurou saber quem era quem, como também não se atreveu a revelar a sua preferência cancioneira. A sua sensibilidade musical é puramente intuitiva; ele não consegue identificar nenhuma nota dos do, re, mi, fa..., e por vezes até confunde partitura com pauta, mas está seguro da sua inclinação pela boa música, aquela que lhe penetra o corpo e a alma, sem se importar se é erudita ou popular. A sua memória musical é antiga, quase toda anterior a 1980. Por muito que tente, não consegue memorizar as músicas mais contemporâneas. Nem sempre concorda com o repertório do coral, que poderia ser mais universal, como deve ser a música, mas o respeita, e ainda não se atreveu a pedir a inserção de algumas de  suas canções prediletas.

       Oops! Estão a chamar para a apresentação do seu grupo. Então, lá vai o meu amigo, com um certo frio na barriga, mas disposto a dar humilde contribuição vocal ao ambiente, junto com demais companheiras e companheiros, e com eles sentir-se  próximo do belo – como é próprio da boa música -, e transmitir essa mesma sensação a todos os presentes. Meia dúzia de razoáveis interpretações depois, os aplausos soaram calorosos, não se sabe se pelo real prazer sentido, ou se pelo incentivo a continuar. Para encerrar, outro grupo vocal, formado só por mulheres – sempre elas –, exceto o maestro, se apresenta com 3 belas canções nacionais. Os aplausos são praticamente de igual intensidade, a indicar equânime agrado. Afinal, não era uma competição musical, mas sim a necessidade de cantores e ouvintes se sentirem mais vivos e mais úteis nessa catártica interação de prazer e entrega.

        É hora de tomar o metrô de volta para a Zona Sul e, no seu assento de idoso, o meu amigo repassa mentalmente o evento com  aquelas cerca de 150 pessoas que,  ativa ou passivamente, participaram do sarau. Lembra da música “Mulher Brasileira”, magnificamente interpretada pelo outro coral, e da avassaladora maioria de mulheres, idosas, ou próximas  de sê-lo, como ele. Como as do seu grupo, bravas mulheres! que não se intimidam com a idade, e nem com o tonto constrangimento masculino de participarem de ações que, além de lhes trazerem e doar prazer, com certeza lhes deixarão um razoável bônus de longevidade. Em outra atividade, ele recentemente protagonizou uma crônica sobre meditação, além de muitas outras já escritas e a escrever. Como na literatura, o meu amigo pode ter descoberto tardiamente sua vocação musical, mas com certeza ainda lhe restará  tempo para que possa fazer do saldo da sua vida um longo sarau lítero-musical.


JCN – NOV -  2013

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Nicanor de Freitas Filho