domingo, 16 de fevereiro de 2014

Crônica 18 Centenária

                                                                  José Carlos Neves
                                                Centenária mulher, de passado adormecido;
                                                           Quantas histórias nele haverás vivido.
                                                           Em quantas guerras te haverás ferido;
                                                  A quantas gerações haverás parido.   (JCN)

        “Zé, eu pode ir no casa seu” (sic)? A pergunta não era uma demonstração de preferência habitacional, pois a fazia a todos os seus genros (por coincidência, todos Zés), mas a explicitação do desejo de, digamos, variar de ares e ambientes familiares. Apesar dos mais de 70 anos de Brasil, o seu português ainda tropeça a cada sentença que, esforçadamente, tenta encadear na comunicação com genros e nora gaijins, ou com qualquer pessoa que não tenha rosto oriental. Recatada, calada, discreta, ensimesmada, é a matriarca centenária de um clã que honra as tradições dos imigrantes japoneses que por aqui aportaram nas primeiras décadas do século passado. Nessa travessia do tempo, teve todo um centenário à sua disposição para cruzar dois milênios, dois séculos e muitas décadas. O símbolo de um século de vida transcende, em muito, o do seu aniversário, para tornar-se também um símbolo das relações históricas de dois grandes países como Japão e Brasil, nas suas forças produtivas, e na capacidade humana de miscigenação e assimilações culturais. Viveu a aventura  japonesa na invasão da China, e a Primeira Guerra Mundial, quando ainda morava no Japão. Já no Brasil, sofreu as consequências da Segunda Guerra Mundial - da qual seu país saiu derrotado -, seja pela perseguição imposta pela política do governo brasileiro, alinhado, por fim, com os aliados, ou por fanáticos patrícios que não admitiam a derrota de seu país e Imperador. Participou do fantástico progresso conhecido pelo mundo do pós guerra, quer seja como anônima agricultora, ou como mulher, esposa, mãe e respeitada cidadã da comunidade nipo-brasileira. Assistiu à chegada do homem à Lua, e à transformação cibernética da comunicação, o que dificultaria a sua própria com este maluco e estranho mundo novo.

        O meu amigo Trasmontano, com carinhosa admiração, olha atentamente para aquela delicada figura que lhe lembra alguma pintura de alguma gravura japonesa. Não veste o tradicional quimono que tantas vezes a viu usar nas tradicionais danças de  bom  odori. Está em trajes civis; várias roupas sobrepostas que a sua idade já exige para um frio de inverno tropical. Seu corpo já demonstra uma silhueta acentuadamente curvada pelo tempo e pela vida, e de uma estatura que parece já ter sido mais alta. Deixou de pintar seu cabelo, que agora se revela todo branco e muito mais charmoso que antes. Sua pele ainda não mostra rugas profundas como seria de esperar em sua idade. Seu rosto é vivaz e determinado, a contrastar com a sua frágil figura. Meu amigo olha para sua sogra, Sueko (filha mais jovem) Shinmyo, estranho som nipônico para a sua trasmontana origem. Neste país de predominante onomástica lusitana, muitos por certo terão confundido seu feminino nome com algum masculino. Isso acontece quase diariamente com a sua Eiko, pela terminação em (o). Ele já chegou aos seus 68 anos, mas diante do centenário daquela mulher, ele se sente ainda um jovem adulto, fascinado pelo que o seu tanto viver poderia carregar de experiência e conhecimento.

        É estranho como duas longínquas pontas do tempo, digamos a de 1914 e a de 2014, possam tocar-se através de um ser humano que viveu e uniu a ambas. É certo que hoje já não é um acontecimento tão raro encontrar-se homens e mulheres com mais de um século de existência, e com mais frequência ainda entre os orientais. Na própria família da sogra do meu amigo, ela é a segunda das irmãs, e seu pai e outra irmã tangenciaram o centenário com seus 99 anos. Isso faz de todos esses longevos seres um privilegiado grupo de não apenas coadjuvantes da História, mas eles mesmos a serem a própria História. É possível que a Sra. Sueko - ou Obaachian (avó), como todos a tratam em família – nem sequer tenha consciência dessa importância social e histórica. E ainda que tivesse essa consciência, ela jamais a reivindicaria para si, pois também  faz parte da História do seu tempo a sua condição de mulher de comportamento recatado, contido e submisso, no qual o brilho, o mérito e o mando eram reservados aos maridos, filhos, irmãos e sogros. Mas foi nesse aparente  recolhimento, para dentro de si mesma, que a sua força e a sua determinação ganharam importância fundamental no parimento das suas oito filhas e um filho - não tão poucos para seu frágil corpo -, nos  cuidados  e   na administração doméstica, na responsabilidade de cuidar todos os familiares no seu entorno, criar e educar os filhos, e ainda ajudar o seu Masatoshi nos intermináveis e cansativos trabalhos agrícolas. Socialmente, ela pode não ter crescido muito, mas, com certeza, nos seus 100 anos  de vida, ela ajudou muito no crescimento quantitativo e qualitativo da sua família, no desenvolvimento da comunidade japonesa e, com esta, no progresso deste país, que sempre recebeu bem imigrantes como meu amigo e sua sogra.

        Um século! Houve tempos em que este termo só fazia sentido para designar períodos históricos, pois só na literatura bíblica é que se encontram figuras religiosas, transmutadas dogmaticamente em humanas, com vivência superior aos 100 anos. O meu amigo não conhece nenhum registro de tais idades alcançadas antes do século XIX. E mesmo que os tenha havido, isso com certeza foi numa época em que o mundo à sua volta pouco terá mudado desde o momento do nascimento ao da morte. Ao contrário das mulheres centenárias de outros séculos, a sogra do meu amigo, durante o seu,  pôde assistir às mais grandiosas e diversificadas alterações no progresso humano, desde os primórdios da História. Em setembro de 2013, o Japão ultrapassou um pouco mais de 54.000 habitantes centenários, dos quais as mulheres ultrapassam as 48.000. Pobres homens! Por onde andará o tão propalado sexo mais forte? Com certeza, hoje andará na aparente fragilidade do corpo da Dona Sueko, legítima representante no Brasil da longevidade nipônica, e como de tantas outras bravas mulheres espalhadas pelo mundo, muitas delas depois de haverem vencido a miséria, a macheza do homem, o abandono familiar, o ato da parir, os preconceitos sociais e profissionais, as doenças, e algumas vezes até a morte, antes que esta as vença num último e bom combate.

        O meu amigo, para conquistar a sua sogra – afinal, não é qualquer um que tem uma sogra centenária -, estudou um pouco de japonês há quase  50 anos atrás. Já está quase todo esquecido, e ela tampouco evoluiu no seu português. Assim, a comunicação entre ambos continua com a mesma dificuldade de antes. É uma pena, pois com certeza ela teria muita História e histórias para contar. Como genro e curioso cronista do seu tempo, ele gostaria de conhecer  mais a sua alma, e o que nela guardou durante esses 100 anos. Quem sabe, nas páginas do seu diário secreto, algum de seus muitos netos ou bisnetos consiga descobrir nele o que significa viver um século. Enquanto isso, que viva outro século, ou quanto lhe for dado viver; que se rebele aos que impeçam que faça o que quiser fazer; que coma o que lhe der ganas de comer; que dance o quanto quiser dançar; que ralhe com quem achar que deve ralhar; que leia seus livros e jornais nipônicos quando lhe der na telha; que assista aos seus programas favoritos desde o Japão; que cante as muitas e belas cantigas da sua tão longínqua infância; que reúna, sempre que puder, toda a sua prole de filhos, netos e bisnetos, genros, nora e demais agregados; que estes a respeitem e lhe enalteçam toda a aura e sabedoria dos centenários; que, finalmente, se sinta leve e livre de todas as responsabilidades acumuladas durante seu primeiro século. A ela, vida ainda mais longa!

JCN – OUT – 2013 – jcneves45@yahoo.com.br

Um comentário:

  1. Tem muitas curiosidades nesta crônica. Sogra centenária, que é querida do genro (pelo jeito dos genros Zés). Português que aprende Japonês. Afinal, um século de história... Parabéns Sr. José Carlos e parabéns Dona Sueko. Linda história!
    Silva Junior

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Nicanor de Freitas Filho