José Carlos Neves
Vibrante como a badalada dos sinos da minha aldeia;
Harmônica como
sons celestiais de anjos em cadeia. (JCN)
Num breve intermezzo do ensaio do coral
do meu amigo Trasmontano, a pergunta
repentina do maestro Élcio, soou
como um desafio: “O que é a Música?”.
E como se um mistério tivesse que ser desvendado, concedeu como pista para
facilitar a resposta: “A Música é a arte
de...”. Pergunta, pista e resposta ficaram no ar e ninguém mais se lembrou
delas até ao final do ensaio. Mas a pergunta ficou na cabeça do meu amigo, e
para ela buscou respostas que não fossem meramente técnicas, mesmo porque ele
jamais aprendeu a reconhecer uma única nota musical. Ele poderia simplesmente
completar a pista do maestro e dizer que a música
é a arte de juntar, combinar e harmonizar sons que soem agradáveis aos ouvidos.
Ele entende que ninguém poderia contestar essa resposta, mas seria
simplificá-la demais. Então ele a procurou dentro da sua alma.
Desde a sua mais remota lembrança de
infância, na sua aldeia trasmontana, o meu amigo carrega os sons primeiros das
badaladas do sino da pequena igreja, a não mais que 20 m distante da casa onde
morava com seu avô paterno e tios. Também os chocalhos dos vários “inos”:
bovinos, caprinos, ovinos, e até suínos e equinos. Nenhum desses sons tinha os
requisitos técnicos do que se convenciona como som musical. E mesmo sem que alguém os combinasse intencionalmente,
eles continuam a soar como orquestra na alma do meu amigo. Na sua aldeia não
havia ainda qualquer tipo de comunicação como rádio, telefone, e muito menos
televisão que pudesse transmitir uma atividade musical vinda de fora. Mas lá
estavam seu padrinho de batismo e outro amigo, com sua guitarra portuguesa e o
violão universal, a tirar plangentes sons de suas cordas, aprendidos de ouvido,
em solos instrumentais, ou acompanhados de suas deseducadas mas sensíveis
vozes. E a gaita escocesa do seu tio Júlio, um bumbo e uma caixa, formavam o
que mais se aproximava do que o meu amigo, conheceu como uma banda. Assim, as
guitarras, a banda, os chocalhos, os sinos e as músicas sacras cantadas na
missa, formaram todo o universo musical da infância do Trasmontano. Mas não foi
pouco. Todos aqueles sons produzidos pela sensibilidade de mãos rústicas de
camponeses continuam a soar na alma do meu amigo até hoje, a competir com a
mais erudita das músicas.
Da sua aldeia trasmontana, passando por
ligeiro intermezzo em Lisboa, até ao seu Brasil de hoje, o meu amigo passou e
passeou por muitos estilos musicais e, sua alma, por muitos estados de espírito
trazidos pela alegria da música popular portuguesa, no som e bailado simples e
brejeiro de um Vira ou um Fandango; na melancolia saudosa de um fado; na
veneranda voz da maior das divas portuguesas, Amália Rodrigues; no êxtase do
som de cristal de guitarras; na
agradável surpresa do novo no chorinho e nas marchinhas bem brasileiras;
nas serestas e nas retumbantes escolas de samba; na bossa nova e nos
irreverentes e transgressores rocks da
jovem guarda e tropicália; no bucolismo dos sertanejos; na moderna irreverência
do hip hop e rap. Daqui mesmo, ou em viagens pelo mundo, o Trasmontano conheceu
muitos outros estilos, ritmos e danças populares deste planeta; seria injusto
descrever uns e não mencionar
outros neste pouco espaço. É certo que não aprecia alguns estilos, mas respeita
a todos, como àqueles que, sim, os apreciam. Isso faz parte da diversidade e
liberdade sensitiva de cada um.
Foi um longo caminho até que pela
primeira vez, lá por 1965, ele ouviu Barcarolle – ária mágica e inesquecível
dos Contos de Hoffmann. Ficou extasiado com sua beleza, e a partir dela
descobriu o universo da música erudita,
e sua vida menos solitária, ao iniciar uma viagem de muitas escalas, como no
compasso simples e crescente do Bolero,
de Ravel; a libertar seu pensamento no coro do Va Pensiero, do Nabuco, de Verdi; a juntar-se à rebeldia da Habanera, da Carmem, de Bizet; a voar
num coro de anjos na Aleluia, do
Messias, de Haendel; a entregar-se ao gênio de Beethoven no fluxo e refluxo de
inquieto sofrimento da sua Quinta
Sinfonia; a sentir a paz no bucolismo pastoral da Sexta Sinfonia; ou enebriar-se no inigualável e esfuziante
prazer da Ode à Alegria, da Nona Sinfonia; a cruzar e sentir os climas
imaginários das Quatro Estações, de
Vivaldi; a sorver toda a religiosidade de Bach em Jesus Alegria dos Homens, em seus Concertos Brandeburgueses;
cavalgar ao lado das Valquírias, de
Wagner; surpreender-se na precoce genialidade de Mozart, em suas muitas
sinfonias, ou entregar seu corpo à força etérea de seu Requiem; ou no passo triste e dolente da Marcha Fúnebre, de Chopin; a levitar na lentitude dos adágios de Albinoni; um suave flutuar
no Lago dos Cisnes, de Tchaikovski;
a orar num canto gregoriano; a arrepiar-se ao ouvir as vozes de tantos
tenores, baixos, barítonos, mezzo sopranos,
sopranos, contraltos, em solo ou em coro, em tantas obras operísticas e
peças curtas, cantadas à capela, ou como num duelo fraterno com suas almas gêmeas: uma infinita diversidade
musical de instrumentos e seus instrumentistas, virtuosos, ou apenas guiados
pela alma.
Então, amigo Élcio, na visão e sentir
do amigo Trasmontano, que agora mal encadeia do, ré, mi, fá..., em resposta à sua pergunta, a Música – com extensão na irmã, Dança - é isso. São todas as sensações
sonoras que nos trazem antídotos ou estímulos aos diversos estados de alma,
que bem podem ser de alegria, tristeza, melancolia, amor, saudade, medo,
coragem, exaltação, amor, ódio, depressão,
entrega, prazer, dor, fé e esperança. Se qualquer som não lograr tocar nalgum
desses sentimentos, não será música; será apenas um ruído. É hora da Ave Maria,
e o dobrar dos sinos da sua aldeia
teimam em penetrar-lhe pele e corpo, e a tocar
fundo na sua alma.
COINCIDÊNCIA EU POSTO SOBRE MÚSICA EM FORMA DE SERENATA E A EXPLANAÇÃO SOBRE O QUE É MÚSICA É EXTREMAMENTE INTERESSANTE. COINCIDÊNCIA FALARMOS SOBRE UMA DAS MAIS BELAS EXPRESSÕES DA ARTE. PARABÉNS. Lucia Leila Dias Gomes (via Facebook)
ResponderExcluirLucia, música é sempre música! Principalmente da boa, que é a de que estamos falando. E como meu amigo comentou que quando lhe foi posta a pergunta: "O que é a música..." eu teria respondido, sem pensar, "Música é tudo de bom que podemos ouvir..." Muito obrigado pelo seu comentário!
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