sábado, 22 de março de 2014

Crônica 21 O que é a Música?


José Carlos Neves
                           Vibrante como a badalada dos sinos da minha aldeia;
                                Harmônica como sons celestiais de anjos em cadeia. (JCN)

        Num breve intermezzo do ensaio do coral do meu amigo Trasmontano, a pergunta repentina do maestro Élcio, soou como um desafio: “O que é a Música?”. E como se um mistério tivesse que ser desvendado, concedeu como pista para facilitar a resposta: “A Música é a arte de...”. Pergunta, pista e resposta ficaram no ar e ninguém mais se lembrou delas até ao final do ensaio. Mas a pergunta ficou na cabeça do meu amigo, e para ela buscou respostas que não fossem meramente técnicas, mesmo porque ele jamais aprendeu a reconhecer uma única nota musical. Ele poderia simplesmente completar a pista do maestro e dizer que a música é a arte de juntar, combinar e harmonizar sons que soem agradáveis aos ouvidos. Ele entende que ninguém poderia contestar essa resposta, mas seria simplificá-la demais. Então ele a procurou dentro da sua alma.

        Desde a sua mais remota lembrança de infância, na sua aldeia trasmontana, o meu amigo carrega os sons primeiros das badaladas do sino da pequena igreja, a não mais que 20 m distante da casa onde morava com seu avô paterno e tios. Também os chocalhos dos vários “inos”: bovinos, caprinos, ovinos, e até suínos e equinos. Nenhum desses sons tinha os requisitos técnicos do que se convenciona como som musical. E mesmo sem  que alguém os combinasse intencionalmente, eles continuam a soar como orquestra na alma do meu amigo. Na sua aldeia não havia ainda qualquer tipo de comunicação como rádio, telefone, e muito menos televisão que pudesse transmitir uma atividade musical vinda de fora. Mas lá estavam seu padrinho de batismo e outro amigo, com sua guitarra portuguesa e o violão universal, a tirar plangentes sons de suas cordas, aprendidos de ouvido, em solos instrumentais, ou acompanhados de suas deseducadas mas sensíveis vozes. E a gaita escocesa do seu tio Júlio, um bumbo e uma caixa, formavam o que mais se aproximava do que o meu amigo, conheceu como uma banda. Assim, as guitarras, a banda, os chocalhos, os sinos e as músicas sacras cantadas na missa, formaram todo o universo musical da infância do Trasmontano. Mas não foi pouco. Todos aqueles sons produzidos pela sensibilidade de mãos rústicas de camponeses continuam a soar na alma do meu amigo até hoje, a competir com a mais erudita das músicas.

        Da sua aldeia trasmontana, passando por ligeiro intermezzo em Lisboa, até ao seu Brasil de hoje, o meu amigo passou e passeou por muitos estilos musicais e, sua alma, por muitos estados de espírito trazidos pela alegria da música popular portuguesa, no som e bailado simples e brejeiro de um Vira ou um Fandango; na melancolia saudosa de um fado; na veneranda voz da maior das divas portuguesas, Amália Rodrigues; no êxtase do som de cristal de guitarras; na  agradável surpresa do novo no chorinho e nas marchinhas bem brasileiras; nas serestas e nas retumbantes escolas de samba; na bossa nova e nos irreverentes e transgressores  rocks da jovem guarda e tropicália; no bucolismo dos sertanejos; na moderna irreverência do hip hop e rap. Daqui mesmo, ou em viagens pelo mundo, o Trasmontano conheceu muitos outros estilos, ritmos e danças populares deste planeta; seria  injusto  descrever  uns e não mencionar outros neste pouco espaço. É certo que não aprecia alguns estilos, mas respeita a todos, como àqueles que, sim, os apreciam. Isso faz parte da diversidade e liberdade sensitiva de cada um.

        Foi um longo caminho até que pela primeira vez, lá por 1965, ele ouviu  Barcarolle – ária mágica e inesquecível dos Contos de Hoffmann. Ficou extasiado com sua beleza, e a partir dela descobriu  o universo da música erudita, e sua vida menos solitária, ao iniciar uma viagem de muitas escalas, como no compasso simples e crescente do Bolero, de Ravel; a libertar seu pensamento no coro do Va Pensiero, do Nabuco, de Verdi; a juntar-se à rebeldia da Habanera, da Carmem, de Bizet; a voar num coro de anjos na Aleluia, do Messias, de Haendel; a entregar-se ao gênio de Beethoven no fluxo e refluxo de inquieto sofrimento da sua Quinta Sinfonia; a sentir a paz no bucolismo pastoral da Sexta Sinfonia; ou enebriar-se no inigualável e esfuziante prazer  da Ode à Alegria, da Nona Sinfonia; a cruzar e sentir os climas imaginários das Quatro Estações, de Vivaldi; a sorver toda a religiosidade de Bach em Jesus Alegria dos Homens, em seus Concertos Brandeburgueses; cavalgar ao lado das Valquírias, de Wagner; surpreender-se na precoce genialidade de Mozart, em suas muitas sinfonias, ou entregar seu corpo à força etérea de seu Requiem; ou no passo triste e dolente da Marcha Fúnebre, de Chopin; a levitar na lentitude dos adágios de Albinoni; um suave flutuar no Lago dos Cisnes, de Tchaikovski; a orar num  canto gregoriano; a arrepiar-se ao ouvir as vozes de tantos tenores, baixos, barítonos, mezzo sopranos,  sopranos, contraltos, em solo ou em coro, em tantas obras operísticas e peças curtas, cantadas à capela, ou como num duelo fraterno com  suas almas gêmeas: uma infinita diversidade musical de instrumentos e seus instrumentistas, virtuosos, ou apenas guiados pela alma.

        Então, amigo Élcio, na visão e sentir do amigo Trasmontano, que agora mal encadeia do, ré, mi, fá..., em resposta à sua pergunta, a Música – com extensão na irmã, Dança - é isso. São todas as sensações sonoras que nos trazem antídotos ou estímulos aos diversos estados de alma, que bem podem ser de alegria, tristeza, melancolia, amor, saudade, medo, coragem, exaltação, amor, ódio, depressão,  entrega, prazer, dor, fé e esperança. Se qualquer som não lograr tocar nalgum desses sentimentos, não será música; será apenas um ruído. É hora da Ave Maria, e o dobrar dos sinos da sua aldeia teimam em penetrar-lhe pele e corpo, e a tocar fundo na sua alma.

JCN – MAR – 2014 – jcneves45@yahoo.com.br  

2 comentários:

  1. COINCIDÊNCIA EU POSTO SOBRE MÚSICA EM FORMA DE SERENATA E A EXPLANAÇÃO SOBRE O QUE É MÚSICA É EXTREMAMENTE INTERESSANTE. COINCIDÊNCIA FALARMOS SOBRE UMA DAS MAIS BELAS EXPRESSÕES DA ARTE. PARABÉNS. Lucia Leila Dias Gomes (via Facebook)

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    1. Lucia, música é sempre música! Principalmente da boa, que é a de que estamos falando. E como meu amigo comentou que quando lhe foi posta a pergunta: "O que é a música..." eu teria respondido, sem pensar, "Música é tudo de bom que podemos ouvir..." Muito obrigado pelo seu comentário!

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Nicanor de Freitas Filho