Nicanor de Freitas Filho
Ao
relembrar o caso do Ettore comecei a retroagir no tempo para lembrar-me de
outros fatos que eu pudesse contar aqui. Rememorando, lembrei-me da decisão de
minha Mãe de me mandar para a Escola Agrotécnica de Muzambinho. Eu estava sem
estudar havia um ano, trabalhando na Oficina do Padrinho.(http://www.freitasnet.blogspot.com.br/2012/09/causo-59-minha-formacao-profissional-iii.html)
Vivíamos numa dificuldade muito grande, pois meu Pai
estava “ausente” já fazia mais de 5 anos e minha Mãe nos sustentava com o
salário de zeladora do Grupo Escolar Delfim Moreira, em Araxá. Para o meu irmão
mais velho, ela já tinha conseguido lugar numa Escola Profissional em Belo
Horizonte.
No início de 1.956 minha Mãe me chamou e me disse que a
Sra. Aparecida tinha arranjado uma vaga para eu ir para Muzambinho. Onde?
Muzambinho! Eu só conhecia Araxá, Uberaba e Veríssimo. Tinha então 12 anos,
acabados de completar em 15 de fevereiro daquele ano. Eu era uma criança muito
ingênua, que nunca tinha saído da barra da saia da Mãe.
Dona Aparecida, filha do senhor Mesquita – o farmacêutico
– me chamou na casa dela e me entregou duas cartas, uma para na Escola
Agrotécnica e outra dirigida ao W. M. M. e me explicou:
“ – Você terá que ir até Uberaba, ir à Estação de
Trem, no dia 22 de fevereiro, e às 13:00 h, você deverá estar lá e procurar o
Waldir, entregar esta carta para ele, onde eu explico quem é você e peço para
ele ajudá-lo no que for possível. Vocês vão comprar um passe coletivo escolar,
porque deverão estar lá cerca de 10 menores, como você, que irão para a Escola
Agrotécnica, onde ele já estuda e conhece tudo. Conheço-o e tenho muita
confiança nele. Ele explicará tudo para você.
Vocês vão fazer um exame de seleção e você tem que passar, para ficar
lá. Vai com Deus e tenha muito juízo!”
Minha Mãe correu para arranjar, acho que cem cruzeiros,
umas roupinhas para eu viajar, lembro que ganhei um terninho novo de brim cinza,
uma mala, daquelas de fibra marrom, tirei fotografias 3 x 4 lá no Parateca
(veja abaixo), a Tia Suça me deu minha Certidão de Nascimento, e no dia 22 às
6:00 h da manhã, Mamãe foi me levar na Rodoviária, depois de fazer mil
recomendações: “ – Não fale com estranhos! Confie no senhor Waldir!
Procure o Tio Santo! Tome cuidado com tudo, porque esse mundo está cheio de gente
velhaca!”
E várias outras recomendações de toda Mãe zelosa.
Peguei o ônibus para Uberaba. Levava cerca de 4 horas a
viagem, estrada de terra, lembro-me que dentro do ônibus foi que dei conta que
estava sozinho na vida! Que tinha que cuidar de mim, tinha que me virar. Eu
chorei! Não sei por que, mas chorei. Acho que um pouco, já de saudade, um pouco
de tristeza de deixar para trás a minha vida, parentes, amigos, principalmente
a Mamãe, um pouco de medo, um pouco de enfrentar o desconhecido. Durante 4
horas eu fiquei ali no assento do ônibus, com um senhor ao meu lado, que não
sabia quem era, que não conversou, que nunca soubemos quem era um quem era o
outro. Não sabia muito bem o que fazer e muito menos o que iria acontecer,
daqui para diante. Fiquei absorto nos meus pensamentos vagos, sem entender
muito bem o que, de fato, acontecia.
Mamãe tinha me dado o endereço do Tio Santo, em Uberaba,
Rua Vital Brasil, 28 e dito para procurá-lo e pedir para ele me levar à Estação
do trem. Sempre recomendava para procurar pessoas sérias para ajudar, para se
informar, etc.. Por volta das 10 horas chegamos à Rodoviária de Uberaba. Desci,
peguei a malinha marrom, não muito pesada, não muito leve e fui direto num
homem de uniforme, que me pareceu um policial. Perguntei como devia fazer para
chegar à Rua Vital Brasil, perto do Largo Santa Teresinha. Ele perguntou se eu
estava sozinho e se a mala era pesada. Eu disse que estava sozinho e que
conseguia carregar a mala bem. Você vai ter que subir o Morro da Onça. É muito
íngreme e um pouco longe. Explicou-me até que com detalhes e lá fui eu, debaixo
de um sol de fevereiro, em Uberaba, dez e meia da manhã, quem conhece, sabe do
que estou falando! Parei mais uma vez no centro da cidade e perguntei se estava
no caminho certo; estava, e, quando cheguei ao pé do Morro da Onça eu já me
lembrei, pois em 1950 tínhamos morado lá e não havia mudado muita coisa. Subi
aquele “morrão” devagar, mas cheguei lá na casa do Tio Santo logo depois das 11
horas.
Sem ser avisada que eu iria, a tia Aurora, mulher do Tio
Santo, como que assustou com a minha chegada, custou um pouco para se lembrar
de mim, mas me fez entrar, me deu água, frutas e disse que teria que esperar o
Tio Santo vir para o almoço. E foi tratar do almoço e fiquei sozinho na sala,
pensando na vida. Ele não demorou muito.
Durante o almoço o Tio Santo me fez um monte de
perguntas, que eu não soube responder nem a metade, pois eu dependia de
encontrar o Waldir para ter aquelas informações. Quis saber ainda, quanto eu
tinha de dinheiro, quanto tempo ficaria lá, se ia ficar na escola mesmo ou se
teria que ficar em alguma pensão e todas essas coisas. Terminado o almoço, disse
que tínhamos que ir para chegar lá em tempo, pois era um pouco longe e naquela
época ninguém tinha condução; andava-se a pé! Pegou minha malinha e fomos,
debaixo do sol muito quente e nas ruas de terra, até à estação era realmente
longe. Fomos conversando não me lembro sobre o que, mas chegamos antes de uma
hora da tarde, conforme eram as instruções da Dona Aparecida. Tio Santo pegou a
carta, foi até à bilheteria, conversou um pouco com o funcionário uniformizado
e de boné e disse que era para irmos à sala, do chefe da estação, para
preencher um papel, para participar do passe coletivo escolar e encontrar com o
Waldir que era o responsável por todos nós. Ele tinha então, uns 17 anos, mas tinha
autorização do Pai e do Juiz para viajar conosco. Nosso passe era de segunda classe, que já era
metade do preço, mas viajava-se em bancos de madeira. Tínhamos desconto por
sermos estudantes e tinha mais descontos por sermos em mais de 10 passageiros.
O trem saía, na verdade, às 15:00 h e o Tio Santo ficou lá comigo até a hora do
embarque, conversou com o Waldir e pediu para me “olhar”. Entendi que o Tio
Santo sabia quem era o pai dele, que tinha uma Serraria em Uberaba. Ele esperou
o trem chegar, me ajudou colocar a mala no bagageiro e me disse para obedecer
ao Waldir, que era uma ótima pessoa.
Lá fui eu para minha primeira viagem de trem. No começo
foi tudo novidade e não me inteirei de tudo que estava acontecendo. Acho que
nem tinha idade para saber muito bem o que acontecia. Na primeira oportunidade
o Waldir veio sentar perto de mim e de outro colega e nos explicou que tínhamos
que ter cuidado, pois nunca se sabia quem estava no vagão conosco, de segunda
classe era um pouco mais perigoso, então devíamos ficar de olho na nossa mala e
nas nossas coisas. Informou-nos que teríamos que fazer duas baldeações, uma em
Ribeirão Preto e outra em Tambaú. Que chegaríamos pela manhã em Guaxupé. O trem
não ia mais até Muzambinho. Tinha sido desativado o ramal de
Guaxupé-Muzambinho. Mas que o caminhão
da Escola iria nos pegar em Guaxupé. Sem
entender muito bem tudo o que ele disse, concordei sem fazer perguntas. Passado
algum tempo, descobri que se podia andar pelo vagão e não precisava ficar
sentado naquele banco de madeira, que, dizíamos, deixava-nos com a “bunda
quadrada”!
Imagina que era locomotiva a vapor, tocada a lenha e de
vez em quando, nas curvas, entravam pequenas brasas que caíam sobre a roupa e
queimava. Quando percebi, já estava com dois furinhos na minha calça nova. A
partir da sétima ou oitava estação, percebemos que podíamos descer quando o
trem parava e era fácil de saber quando partia, pois o “Chefe”, que também
descia, ficava na plataforma observando e apitava uma vez e o Maquinista
respondia com um apito, apitava a segunda vez e o Maquinista novamente respondia.
Somente depois do segundo apito ele partia e a partida era muito lenta; custava
embalar!
Foi uma viagem muito difícil, pois não só faltava
experiência, como ficava sempre pensando no pouco dinheiro, tinha que
economizar, pensando no que me esperava lá na tal Escola. Quando foi chegando a
noitinha, foi dando fome e o Waldir me falou que era melhor esperar chegar em
Ribeirão Preto, porque era mais barato, do que comer no carro-refeitório e que
teríamos mesmo que esperar mais de uma hora o outro trem. Chegamos em Ribeirão
Preto já de noite e lembro que comi pão com mortadela, que era o que tinha de
mais barato e tomei um guaraná. Foi tudo que comi de jantar. Tomamos o outro
trem, para Tambaú e acabei dormindo, ou melhor, cochilando e acordando, até que
paramos, de madrugada em Tambaú, onde fizemos a segunda baldeação, com nova
espera de cerca de 1 hora, ou talvez mais. No trem, novamente cochilei e
acordei, mas amanheceu e chegamos em Guaxupé.
Descemos do trem, cada um com sua malinha, alguns com duas malas e fomos
a pé até à Praça principal, onde tomamos café e comemos pão com manteiga, numa
padaria que o Waldir já conhecia. Tivemos que esperar até às 8 da manhã, para
abrir o Posto Telefônico. O Waldir foi lá e pediu um interurbano, a cobrar,
para a Escola em Muzambinho. A telefonista informou que demoraria cerca de uma
hora. Não sei quanto tempo ficamos ali nos bancos da praça esperando o caminhão
da Escola. Mas uma hora chegou! Pusemos tudo na carroceria e subimos todos.
Partimos para a Escola, de caminhão, depois de viajar mais de 12 horas de
segunda classe, aquilo parecia um suplício! Estrada esburacada, muita poeira,
muito desajeitado, ficar ali sentado na beirada da carroceria, pois não tinham
nem aquelas tábuas que a gente via nos caminhões de “pau-de-arara”. Hoje
escrevendo, eu penso que era mesmo coisa de louco! Uma aventura impressionante
para um moleque de 12 anos, que nunca tinha saído da barra da saia da Mãe.
Chegamos direto na Escola, não vimos cidade, não vimos
nada. A Escola me pareceu imensa. Tantos prédios, muito grandes, o tempo tinha
fechado um pouco mas não tinha chovido. Fomos levados para um dos dormitórios.
A cada um foi entregue uma roupa de cama completa, incluindo toalha de banho,
e, designado um armário que ficava um em cima e outro em baixo. Fiquei com um
de baixo. O Waldir veio para me falar que tínhamos que arrumar a cama e marcar
bem o lugar, e teríamos que comprar um cadeado, para fechar o armário. Que era
para tomar banho e irmos à cidade comer, porque a Escola ainda não estava
funcionando. Falou para não desmanchar a mala, para ficar tudo guardado dentro
da mala, até que comprássemos o cadeado para fechar o armário. Ele, como já era
aluno, ficaria em outro dormitório. Eu teria que ficar no dormitório de
visitantes em exame, pois nem sabíamos se seríamos selecionados, para ficar.
Bem,
como já contei o causo do Ettore, significa que eu passei... mas como...
Freitas
ResponderExcluirDeliciosa essa sua viagem no trem e no tempo. Assim como você mencionou o "sotaque de anjo" na música para o seu neto, o seu texto tem todo aquele sotaque mineiro, talvez até inconscientemente liberado, mas que nos fica entranhado e guardado desde a infância, e que nos surpreende ao "revivermos" na sua memória. Temos aventuras e passados similares, ainda que em países e continentes distintos. Também estão escritos, e um dia os conhecerás. Ninguém melhor que a nossa alma para conhecer o nosso passado. Espero que continues abrindo a tua.
Grande abraço. José Carlos -17/09/12
Nica, também me lembro dos tempos difíceis. Parabéns por ter vencido na vida, como todos os filhos de D. Edith e "seu" Bita. Hoje, quando vemos nossos filhos e netos com saúde e fartura, temos de dar graças a Deus por ter tido a mãe zelosa que tivemos. Só pra encerrar, lembro-me da primeira TV que você nos presenteou - uma Philips com gabinete embutido. Era um mundo novo que se abria para nós, pobres moradores do interior de Minas.
ResponderExcluirOla Freitas, nossa daí veio toda a sua fibra e coragem, desde menino vc. já se aventurava nesta vida....acredito que desta forma, com muito esforço e coragem, é que damos mais valor a cada conquista e vitorias, ou aos projetos realizados, assim eles tem um sabor muito mais especial, até os valores são maiores.. pelo menos é assim que me sinto... Aliás saudades dos tempos de Melhoramentos, uma escolinha para muitas da minha geração....onde dei um pulo enorme para o que sou e conquistei hoje.....Abçs. Irene
ResponderExcluirZé Carlos, João Batista e Irene, muito obrigado pelos seus comentários. Além de me fazerem sentir novamente, o que realmente sinto, quando lembro deste tempo, me dá mais coragem para lutar pelos meus netos. Se a gente pensar em outras coisas que temos visto nos dias de hoje, a minha história não teve dificuldades, porque sempre tive um "anjo" me protegendo. Nessa viagem o Waldir, que nunca mais o vi. Mas Deus sabe de minha gratidão! Obrigado!
ResponderExcluirRecebi por e-mail os seguintes comentários:
ResponderExcluirNicanor,
bonita a sua história. Parabéns pelo que vc passou e pelo que vc se tornou. Tem mais valor aquele que superou dificuldades p/ chegar lá. Fico orgulhosa de ser sua amiga.Janine
Caramba Freitas! Passei a te admirar ainda mais...
Sent from my iPhone Carlo Barbieri
Mais um comentário recebido por e-mail:
ResponderExcluirNicanor,
bonita a sua história. Parabéns pelo que vc passou e pelo que vc se tornou. Tem mais valor aquele que superou dificuldades p/ chegar lá. Fico orgulhosa de ser sua amiga. Janine
Nicanor,
ResponderExcluirMuito bonito, porém triste, sair muito novo de casa. Lembro-me muito bem. Sua mãe deve ter chorado muito.
Graças a Deus um final muito feliz. Gostei de recordar tudo.
Abraços, Suzana.
Suzana, continuo me esforçando para lembrar de tudo da infância. O difícil é lembrar o que tenho que fazer amanhã, ou o que fiz ontem...
ResponderExcluirSr. Nicanor, muito bonito esse trecho da sua vida.
ResponderExcluirReafirma o que penso. Acredito que todos nós temos que 'sofrer' pra conquistar uma vida digna, pra dar valor às conquistas. E lendo isso me confortei, me espelhei, devidas proporções eu também ralei e continuo ralando pra conseguir estudar, trabalhar, conquistar estabilidade e construir minha família.
Parabéns e obrigado por compartilhar.
Nicanor, parabéns pelos escritos.
ResponderExcluirEste, em particular, me fez imaginar como foi para meu pai que também saiu daqui de Araxá com cerca de 14 anos de idade pra estudar na escola agricola de Ribeirão Preto e depois Pirassununga. Ele contava que ia à cavalo até a cidade de sacramento e de lá pegava o trem. Imagino o menino perdido, tão longe de casa. E não havia o que fazer senão seguir em frente.
Parabéns e obrigado por compatilhar.
Emilio, muito obrigado pelo comentário e pela sua paciência em ler meus textos. Eram outros tempos e todos sobrevivemos e, graças a Deus, vencemos, porque afinal a juventude de hoje nem precisa saber o que passamos...
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