sábado, 18 de janeiro de 2014

Causo 91 Um Filme Real

  
Geraldo Vanderlei Falcucci
 
             Comecei a trabalhar antes de completar dez anos de idade.  Papai adquiriu uma doença chamada CIÁTICA, que nada mais é que um reumatismo no nervo Ciático. Com certeza consequência das constantes e inúmeras pescarias, que ele tanto gostava de fazer. Não podendo trabalhar e com oito filhos menores para sustentar nossa situação ficou realmente difícil. Depois de pesquisar e descobrir um médico especialista na doença deixou-nos garotos com minha mãe em Muzambinho e lá foi ele para S. Paulo em busca de recursos para aliviar seus males. Papai só levou consigo o dinheiro da passagem. Trabalhou na Doceira Paulista, que vim a conhecer anos mais tarde quando fui morar naquela capital e que fica ali no Largo Santa Cecília. Depois de três meses juntou dinheiro suficiente para pagar o médico. Fez o tratamento, ficou curado e voltou pra casa. Regressando a Muzambinho, começamos tudo do zero. Eu tinha doze anos e uma escadinha de irmãos atrás de mim. Meus avôs haviam se mudado para São Paulo e morávamos na casa que era de meu avô, na Rua Barão do Rio Branco perto do pontilhão da estrada de ferro. Na edícula da horta existia um forno grande. Vovô era padeiro. Foi dessa maneira que papai instalou a confeitaria. O serviço não era pesado, mas durava o dia inteiro, às vezes até à noite. O local muito quente e abafado. Eu e meus irmãos trabalhávamos ajudando papai. Fabricávamos roscas, bolachas, broas, pudins, uma variedade grande de guloseimas. Também, salgadinhos para festas de aniversário, casamento e outras comemorações. Papai havia aprendido muito no período em que trabalhou na Doceira Paulista. Depois de tudo assado, por volta das 15, 16 horas, saíamos entregando as quitandas para os diversos comerciantes que adquiriam nossos produtos. Era cansativo carregar nas costas uma cesta cheia de quitandas. Mesmo assim era bom, pois tínhamos muita fartura de doces e salgados para comer. Depois que assávamos as quitandas usávamos o calor do forno para torrar amendoim que vendíamos todos os dias na porta do cinema. No Brasil daquela época a televisão engatinhava e só muito mais tarde chegaria a Muzambinho. Só existia em algumas capitais e com poucos aparelhos e programação incipiente. Cinema era a diversão do momento, um lugar chic frequentado por ricos e pobres. As sessões das vinte horas diariamente, sempre tinham muitos espectadores. Mesmo as pessoas que não iam assistir ao filme davam uma voltinha até à porta do cinema para ver os cartazes das atrações futuras, encontrar o namorado ou simplesmente passear. Uma vez por semana, após a venda dos amendoins, eu e meus irmãos também íamos ao cinema. Vendíamos todos os dias uma cesta cheia de amendoim. Nos finais de semana, eram duas e até mais, nas duas sessões de cinema. A confeitaria dava pouco lucro, apenas o suficiente para nos sustentar. Éramos ao todo dez pessoas na família. Foi muito gratificante quando começamos a ganhar aquele dinheirinho extra com a venda dos amendoins. Coisa pouca, mas para quem tinha menos ainda representava muito. No entanto, logo surgiram muitos outros vendedores. Mas os concorrentes não tinham forno e muito menos know-how. Torravam o amendoim na panela deixando o produto desigual com grãos queimados e outros crus. Claro que o produto era muito inferior ao nosso que era torrado por igual, levado ao forno quase na hora de ser colocado à venda. Chegava ao consumidor ainda quentinho. Portanto, era melhor. Melhor não, muito melhor e vendíamos muito mais. Logo, logo, os concorrentes desistiram, pois dominávamos o comércio de amendoim. Também vendíamos na porta do Circo ou nos Parques de Diversões, quando chegavam à cidade. Na porta do cinema enquanto um dos meus irmãos segurava a cesta, eu trocava Gibi, Pato Donald e muitas outras revistas infantis da época. Desde criança gostava muito de ler. Mais tarde eu abandonaria os Gibis, mas não o gosto pela leitura, o que me foi muito útil. O dono do cinema, como havia caído consideravelmente sua venda de balas e chocolates na bombonieri que mantinha no saguão de entrada, começou a implicar conosco. As cascas de amendoim e os saquinhos de embalagem sujavam muito o cinema. Ele tinha suas razões, claro. Ficávamos com a cesta em cima do passeio em frente ao cine São José. O dono do cinema não queria permitir. Invariavelmente pegava-nos pelo braço e colocava-nos fora do passeio na rua junto ao meio fio, como se fosse o dono do local que na verdade era e é público. Eu sentia muita vergonha e ficava humilhado nessas ocasiões. Fui ficando com raiva daquele “alemão”. Pensava numa maneira de me vingar dele. Com o lucro da venda de amendoim compramos algumas roupas para toda a família e uma capa de chuva para cada um dos três irmãos. A idéia de me vingar de “Alemão” não me saía da cabeça. Num dia de céu cinzento e muita chuva, repentinamente surgiu uma idéia que considerei brilhante e arrojada. Veio tudo tão de repente que até eu me surpreendi com o que imaginei. Armei uma arapuca na horta de casa e capturei uma dúzia de passarinhos e os coloquei em uma caixa de sapato, toda furadinha. Tudo escondido de meus pais. Estava sendo exibido um filme de Tarzan com Johnny Weissmuller e, nessas ocasiões, o cinema ficava lotado. Os garotos (também os adultos) gostavam demais do homem do cipó, que morava em cima de uma árvore e era capaz de afugentar o leão com seu urro selvagem. Depois de vendermos o amendoim e guardarmos as cestas no bar de um amigo, entramos no cinema. Eu levava escondida debaixo da capa e do braço, a caixa com os pássaros. Como já disse era um dia chuvoso, portanto usávamos capa. Sentei-me na parte de cima do cinema, no local denominado vulgarmente de “poleiro”, enquanto meus irmãos tomaram assento em baixo, longe de mim. Quando o filme ia pela metade, numa cena bem clara, soltei os pássaros que voaram diretamente para a tela. Foi uma confusão dos infernos. O povo ria, gritava, assobiava, ficaram em pé e batiam nos assentos das cadeiras. Foi preciso acender as luzes e interromper a sessão temporariamente, tal a balbúrdia que se estabeleceu. Claro, eu me desfizera da caixa e rapidamente trocara de lugar descendo para o andar térreo. Tirei a capa e a dobrei, colocando-a debaixo do braço, para despistar. Mesmo assim, dias depois, o porteiro Marcelo Menegon, acabou descobrindo que fora eu o autor. Fui suspenso de frequentar as sessões por trinta dias. Naquela época existia esse tipo de punição aplicada pelo dono ou gerente. A Lei era feita e aplicada por eles. Tive que assistir aos filmes pela fresta da porta de saída de emergência, dentro do Bar Majestic. Se alguém se postava na frente eu enchia a boca com fumaça de cigarro, embora não fosse fumante, e soprava pela fresta fazendo o intruso arredar. “Alemão” continuou a me aborrecer. Quando finalmente pude voltar a frequentar as sessões, levei um pouco de pó-de-mico misturado com pimenta do reino moída bem fino, rapé e esparramei pela sala de exibição. Não demorou muito, as pessoas começaram a se coçar e espirrar ao mesmo tempo. Um Deus nos acuda. Minha mente continuava trabalhando, arquitetando meios de trazer mais dificuldades para o “Alemão”, chamado Bengtson, que, na verdade era descendente de austríacos. Um dia, “Alemão” acenou-me com a bandeira branca e chamou-me em particular, pediu trégua, pediu paz. Eu o havia vencido. Fiquei feliz, radiante! Eu vencera aquele brutamonte insensível que tanto havia me magoado. Muitas tinham sido as ocasiões em que me pegara pelo braço e falando alto, me destratando na presença de todos, havia me colocado para fora do passeio. Eu que era ainda um garoto impúbere que lutava na vida em busca de uns trocadinhos. Nessas ocasiões, eu morria de vergonha. Sentia ódio de “Alemão”, mas seu prejuízo estava sendo maior que o meu. Puxa! Eu havia vencido uma das minhas grandes batalhas. Aceitei o pedido de trégua, de paz, desde que pudesse vender meus amendoins sem ser molestado. As sessões cinematográficas a partir daquele “tratado de paz” tornaram-se mais tranquilas. Muitos anos depois, já adulto, tornamo-nos amigos. Hugo Bengtson e eu rememorávamos aqueles fatos, quando à noite, depois do cinema ele ia para o reservado do Bar Majestic onde tomava uma cervejinha com amigos. Nos períodos de férias escolares eu trabalhava de garçom naquele bar. Recentemente estive em Muzambinho e visitei o cemitério. Deparei não só com o túmulo de “alemão”, mas também com o de Marcelo Menegon. Rezei a ambos pedindo perdão por aquelas traquinagens que um dia fizera. Eu já os havia perdoado há muitos e muitos anos. Naquele momento, em segundos, revivi aqueles acontecimentos todos. Um misto de saudade, tristeza, nostalgia tomou conta dos meus sentidos. É triste saber que um dia também tenho que partir. Mais triste fiquei ao rememorar a antiga frase que por muitos anos ficou pintada na entrada do cemitério:
                     "EU FUI O QUE TU ÉS, TU SERÁS O QUE EU SOU! "
  
                                                                             (Do Livro Estilingue da Saudade)

6 comentários:

  1. Se não me engano, em Paraibuna (SP), há muitos anos atrás, na porta do cemitério estava escrito: "Nós que aqui estamos por vós esperamos". Não passei mais por lá e ignoro se ainda estão me esperando...
    Abs.
    Soja

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    1. Agora já consegui descobrir a configuração correta para responder. Eu tinha bloqueado os "cuckies" do meu blog... pode?
      Como lhe disse, no cemitério de Araxá tem a seguinte inscrição na porta: "Lembra-te que és pó e em pó tornarás". Acho que todo cemitério tem mesmo este tipo de "mensagem"...

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  2. Freitas
    O causo do Geraldo, que suponho ser um capítulo de algum livro dele, me transportou imediatamente ao final da minha infância e toda a adolescência. Impressionante como são parecidas as trajetórias de padarias e confeitarias, e acho que até mesmo as épocas, que me parecem ser final dos anos 50 e meia década dos 60. Não tenho certeza se já leste, mas um dos capítulos de meu livro ainda no prelo é "Adolescência Enfarinhada". Geraldo, tempos difíceis mas fantásticos para a nossa formação de vida. As dificuldades não nos enfraqueceram, mas sim nos fortaleceram. Abraços. José Carlos - 20/01/14

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    1. Zé Carlos, eu tenho o seu texto "Adolescência Enfarinhada" e é, realmente, muito parecido com o do Falcucci, aliás de muitos amigos, pois as Padarias em São Paulo, sempre foram um local de trabalho para muitos principiantes...

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  3. Intrigante, o causo do Geraldo.Narrativa onde se apreendem marcas, que permitem ao leitor e autor um encontro de real empatia, no entrelaçamento da infância-adolescente, semente de maturidade, traduzida em trabalho e
    peripécias , entornadas na idade adulta, uma vez que evoca suas peraltices e tarefas
    , imersas na memória, e agora,emersas, no reviver de uma história, culminando na visita ao que fora seu predador, perdoado ainda em vida.No cemitério,resta a reflexiva frase na lápide fria, frase essa que incomoda a mente.

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    1. Não consegui identificar o comentarista acima, mas fico muito agradecido pelo comentário, pois é exatamente isto que me chamou a atenção, quando li o livro do Falcucci. Acredito que tivemos a mesma interpretação do texto dele, que além de tudo é tão divertido quanto ao autor...

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Nicanor de Freitas Filho